A Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) instalou no dia 19 de agosto último uma CPI visando investigar supostas irregularidades em contratos firmados pelo governo estadual com agências de publicidade. Na denúncia, há suspeita de que um primo da governadora Raquel Lyra (eleita pelos tucanos, mas hoje filiada ao PSD de Kassab) seja “sócio oculto” de uma das empresas investigadas.
Apesar do esforço da base governista, a abertura da CPI foi aprovada no dia 4 de agosto, atendendo a um requerimento feito pela deputada Dani Portela (ainda formalmente filiada ao PSOL). A parlamentar apontou “indícios de direcionamento ou conflito de interesses” envolvendo a governadora e familiares dela. No centro da denúncia há um contrato de publicidade previsto para durar dez anos que pode chegar a valores próximos a R$ 1,2 bilhão, entre o governo e agências de comunicação, ou seja, perto de R$ 120 milhões por ano. Também há denúncias sobre a existência de um “gabinete do ódio” estadual consolidado em redes sociais dedicadas e espalhar denúncias e calúnias a figuras da oposição do parlamento pernambucano. A CPI estadual deve render.
Naturalmente, o governo Raquel se defende afirmando que “o modelo adotado pela Secretaria de Comunicação respeitou os princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade e transparência e seguiu a jurisprudência consolidada do Tribunal de Contas da União (TCU) e práticas utilizadas pelo governo federal e por outros estados brasileiros”. Quem viver, verá.
Entre o ético e o justo
Por mais que seja muito suspeito o novo contrato é possível que esteja dentro das normas da administração do estado burguês, algo que deve ser apurado. O problema central vai bem além disso, pois existe uma questão política e de justiça no investimento do dinheiro público. As opções da governadora atendem aos seus interesses eleitoreiros, mesmo que, ao fim e ao cabo, não existam irregularidades.
Exemplarmente, o governo empenhou para este ano em Saneamento cerca de R$ 157 milhões; R$ 165 milhões em gestão ambiental e R$ 39 milhões na área de desporto e lazer, números que contrastam com os R$ 120 milhões anuais previstos no contrato alvo da CPI (1). Há uma desproporção imensa entre investimentos sociais e o gasto previsto em publicidade.
O pano de fundo no teatro político estadual é a forte disputa entre a governadora e o prefeito de Recife, João Campos, batalha eleitoral prevista pelo governo estadual em 2026. Campos também sofreu denúncias importantes este ano (2), mas segue bem nas pesquisas eleitorais, o que exige de Raquel uma forte publicidade para enfrentar um candidato favorito. Eleito prefeito ano passado com mais de 78% dos votos no 1º turno, João lidera as pesquisas recentes para o governo do estado em 2026 que o colocam como vencedor ainda no 1º turno contra Raquel e os demais adversários (3). Falta muito tempo para as eleições de 2026, mas tudo indica que a governadora está em desvantagem e, por isso, abusar sem limites da publicidade dos seus atos de governo é fundamental.
Escolhemos o 6 ou o ½ dúzia?
Durante o governo estadual de Paulo Câmara, (eleito pelo PSB, – hoje sem partido – governou entre 2015 e 2023) tanto João Campos como Raquel Lyra apoiaram tal composição. Na época, Pernambuco foi recordista nos índices de desemprego, dado que segue firme no governo de Raquel Lyra, eleita como “oposição” à Câmara em 2022. Cerca de 50% dos trabalhadores/as do estado estão na informalidade. Na prefeitura de Recife, de forma bem parecida, João Campos aplica um modelo tradicional de administração: nas gestões do PSB há um histórico de utilização da Educação e da Saúde como meios para repassar dinheiro público e garantir a farra de lucros aos grandes empresários.
Para João Campos não há limite para contratos com empresas via PPP (parceria público privada) favorecendo setores como as fundações Lemann e Ayrton Senna, famosas pelo ideário liberal-conservador na educação. Milhões do orçamento público também foram destinados para instituições privadas como Maurício de Nassau e Unibra, universidades caça niqueis de qualidade duvidosa. Na área da saúde, o jovem gestor entregou ao setor privado postos de saúde, emergências e hospitais, tudo ‘legalmente’ concebido via Organizações Sociais privadas (OS). É a farra privatizadora do prefeito ‘pop’, referência de uma ‘esquerda’ que faz gestões tradicionais e privatistas. Recife segue como a segunda cidade brasileira com mais desigualdade social e entre as mais violentas do país.
Os ótimos resultados eleitorais não podem disfarçar os números reais de Recife e do conjunto do estado. Sabemos que as eleições refletem um contexto de falseamento da realidade onde alguns investimentos e ações dos prefeitos são muito ampliados via marketing, jingles e avalanches de dinheiro. Em 2024, ano das eleições municipais, houve uma onda de reeleições pelo país todo e, neste cenário, João Campos foi recordista de votos entre as grandes cidades brasileiras.
Prefeito oligárquico
João Campos não saiu do nada: sua origem é familiar e oligárquica ligada ao clã político “Campos” vinculado a outro clã, o “Arraes”. Tal aliança, “Campos-Arraes” possui relações ainda com outras oligarquias, como a família “Lyra”, da governadora Raquel: seu pai foi vice de Eduardo Campos, governador do PSB anterior a Paulo Câmara. Outra oligarquia famosa que disputa o poder do estado é a família “Coelho”, centrada na cidade de Petrolina. Fernando Bezerra Coelho, membro de tal grupo, foi líder do governo Bolsonaro no Senado. Há uma rede de interesses oligárquicos, acomodamentos, conciliações e, quando conveniente, algum grau de disputa entre estes setores.
Talvez a CPI do bilhão acabe em pizza e Raquel saia ilesa da denúncia, assim como nada se prove contra João Campos, mas é evidente que em Pernambuco falta uma alternativa dos trabalhadores que poderia surgir da articulação e da unidade da esquerda socialista, dos movimentos sociais e de tantos lutadores que vivem e batalham no estado.
Não é possível apenas assistir à disputa oligárquica ou, pior ainda, escolher o “mal menor”. A tarefa de construir uma alternativa de esquerda em Pernambuco é possível e pode surgir dos esforços dos lutadores honestos e combativos que militam neste estado de tantas resistências, revoluções e embates contra as correntes conservadoras e autoritárias que já dominaram o país. Pernambuco merece mais do que um projeto político liberal burguês apresentado em cada eleição como renovador e “progressista”.
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(1) Dados do orçamento estadual de 2025 podem ser conferidos em https://transparencia.pe.gov.br/responsabilidade-fiscal/planejamento-e-orcamento/acoes-e-programas/.
(2) Denúncias da prefeitura Recife: https://noticias.uol.com.br/colunas/flavio-vm-costa/2025/05/29/joao-campos-recife-contratos-de-engenharia.htm
(3) Pesquisa recente para o governo estadual de Pernambuco em https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2025/08/13/joao-campos-lidera-pesquisa-para-o-governo-de-pernambuco-em-2026.htm.