Em 1º de maio de 2025, foi lançado o filme dirigido por Esmir Filho sobre a vida e a carreira do cantor Ney Matogrosso. A trajetória do artista, nascido em 1º de agosto de 1941 no município de Bela Vista, próximo à fronteira com o Paraguai, foi encenada pelo ator Jesuíta Barbosa.
A infância de Ney de Souza Pereira foi marcada por conflitos com o pai, militar, que se incomodava com as tendências artísticas do menino (que gostava de desenhar) e com a possibilidade de ele ser “viado”. Essa parte da vida de Ney já foi contada pelo próprio em inúmeras entrevistas em que relatou o bom relacionamento com a mãe e sua saída de casa para tentar a sorte no Rio de Janeiro.
Transgressor Vivendo um Transgressor
Davi Malizia, o menino de olhos expressivos que deu vida ao garoto Ney, é sucedido por Jesuíta sem camisa na lida diária com tarefas impostas pelo pai que queria resgatar a masculinidade do filho. É impossível deter-se somente na imagem / personagem Ney Matogrosso. Jesuíta Barbosa não é uma escolha apenas porque conseguiu emagrecer o suficiente para parecer fisicamente com Ney. O olhar do ator captou com maestria os marcantes olhos arregalados de Ney quando canta, pintado, penetrando a plateia como duas lanças de rebeldia comportamental.
Mas há um dado metonímico mais profundo na presença de Jesuíta protagonizando o filme. O ator é assumidamente LGBTQIAPN+, identificando-se como um homem cis bissexual. Iniciou seu trabalho como ator em 2008, no coletivo As Travestidas, composto por travestis, transexuais e artistas transformistas fundado por Silvero Pereira, também um ator LGBTQIAPN+.
Portanto, ter alguém como Jesuíta interpretando Ney Matogrosso é levar mais uma camada de narrativa para o enredo do filme. Jesuíta fala de sua sexualidade e, em 2022, enquanto atuava na novela Pantanal da Rede Globo, declarou que o governo Bolsonaro era desumano e que o país iria eleger de novo um estadista, um presidente nordestino, referindo-se ao então candidato Lula. O ator já fez várias referências à transgressão em relação à heteronormatividade, defendendo uma estética andrógina.
Ney: um andrógino sem medo da censura
Em 2009, a ruptura do referente cultural sobre o ser “macho” que Ney Matogrosso conseguiu concretizar, quebrando o cerceamento da indústria fonográfica durante o Regime Militar foi objeto de estudo de uma tese da área de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará. O filme sobre a trajetória do artista explora esse mesmo ponto, que é uma grande contribuição que ele ofereceu para a sociedade.
Arte não é algo que se pratica impunemente. Não existe arte só por contemplação. Enquanto os nazistas perseguiram os movimentos estéticos ligados ao Modernismo e defendiam a superioridade da arte “clássica” estavam apregoando ideais racistas e homofóbicas. Assim, um artista que se apresenta como neutro, está capitulando à ordem, mesmo que não mencione isso.
Ney declarou suas posições políticas desde o início. Como mostra o filme, fazia figurinos cheios de brilho e se vestia como os jovens progressistas de sua época. Achava ruim o Regime Militar, mas não teve uma militância orgânica contra ele.
Como afirma o antropólogo marxista Maurice Godelier, “a produção material é um processo duplo, o do trabalho como relação dos homens com a natureza e o da relação dos homens entre si”. Viver de arte não é fácil nas economias capitalistas. Porém, a pequena minoria que prospera, enriquece. O preço pago por cada artista que vira uma estrela é tornar-se também uma mercadoria.
O filme aborda a entrada de Ney Matogrosso na Indústria Cultural quando foi descoberto pelo músico João Ricardo, idealizador (e posterior “dono”) da banda de rock Secos & Molhados. Foi o momento em que Ney se reconheceu como cantor, pois antes estudava teatro. E não se rendeu a performar como a ditadura tentou impor a ele. Pelo contrário, fez com que Gérson Conrad e João Ricardo também se apresentassem com pesada maquiagem desafiando os padrões do que era ser masculino…
A solidão é pretensão de quem fica escondido fazendo fita
Amor e sexo livres regados a drogas lícitas e ilícitas eram a prática da juventude que estava realizando o processo de mudanças comportamentais que viriam a ser estabelecidas para as gerações posteriores. Sob influência do rock, do movimento hippie, da crítica aos regimes autoritários e ao consumismo, os jovens adeptos da Contracultura produziam transformações no plano estético, mas que não abalaram a superestrutura econômica por isso não podem ser consideradas revolucionárias.
Ney fez a parte desse grupo. Namorou com o cantor e poeta Cazuza, romance que é retratado no filme. Também viveu junto ao médico Antônio de Maria. A respeito dessa passagem de sua vida o filme trata da epidemia de Aids, que levou a modificações nas formas das pessoas se relacionarem sexualmente (disseminando o uso de preservativos masculinos não apenas para evitação de gravidez) e à utilização de materiais descartáveis como seringas.
Contar a história de um homem com H, que usa batom e tem a rara voz de tenore bianco (uma oitava acima da voz feminina de contralto) não deve ficar limitada às bandeiras identitárias. Uma sociedade totalmente justa, com pleno emprego, com saúde e educação igualitárias, uma sociedade socialista que atenda aos interesses da classe trabalhadora precisa ir além do que as revoluções do século XX ousaram chegar.
Urge uma sociedade em que a igualdade material se estenda ao respeito pela diversidade, com liberdade para os gêneros e orientações sexuais, em que o racismo e os nacionalismos sejam totalmente superados e todas as formas de família sejam reconhecidas.
PELO FIM DA LGTFOBIA!
DIREITO AO ABORTO!
RESPEITO À DIVERSIDADE!