A maioria dos brasileiros (55%) e dos cariocas (62%) aprovam a chacina policial no Rio de Janeiro (Complexo do Alemão e da Penha), sob o comando do governador fluminense Cláudio Castro, realizada no dia 28 de outubro. É o que aponta o levantamento do instituto Atlas Intel. A aprovação chega a 81% entre moradores de favelas em nível nacional e a 88% nas favelas do Rio.
Constatar esse apoio da população pobre a uma ação fascista do Estado burguês brasileiro, que consumou na maior matança na história do Rio de Janeiro, é importante para a esquerda anticapitalista brasileira sair da toada de continuar falando para a própria bolha e, dessa forma, buscar as motivações para explicar o porquê desse tamanho retrocesso para assim repensar a sua atuação de muitos anos.
Dirão alguns que o ato realizado no Complexo da Penha, no dia 31 de outubro, seguido de uma motociata com mais de duas mil, na maioria motoboys, é um sintoma de que existe descontentamento de um setor das comunidades. Não negamos isso, mas afirmamos que é um setor ainda bem minoritário na massa de moradores nas favelas e comunidades, onde reside a maior parte do proletariado precarizado fluminense e brasileiro.
Observar isto é muito superior a sacar que hoje os microespaços como botequins, jornaleiros, barbeiros são dominados pelo discurso de extrema-direita, o que dá sustentação ao bolsonarismo e de alternativas que se postulam ao seu lugar, como Ronaldo Caiado, Ratinho Jr, Romeu Zema, Tarcísio de Freitas. Se, nesse último caso, reflete-se uma pequena burguesia decadente, uma classe média baixa, apavorada com o rebaixamento do seu nível de vida, no caso da classe trabalhadora moradora nas favelas, o buraco é muito mais embaixo. Através da presente colaboração, contamos em suscitar essa discussão e ver como, com os demais setores da esquerda anticapitalista, possamos atuar dentro desse quadro adverso.
Um pequeno histórico do crime organizado nas favelas do Rio de Janeiro
O tráfico de drogas cresceu no Rio de Janeiro nos anos 1970 e 80. O país vivia sob a ditadura militar. O contato dos presos comuns (muitos assaltantes de bancos) com presos políticos, no presídio da Ilha Grande, foi o elemento que deu o sentido de organização para os presos comuns para a conformação daquilo que se convencionou como crime organizado. Em 1974, foi formada a Falange Vermelha, embrião do Comando Vermelho. Em 1979, a Falange Vermelha assassinou os líderes da rival Falange Jacaré, consolidando, dessa forma, o poder do Comando Vermelho, no presídio da Ilha Grande.
Em meio ao período do populismo de Chagas Freitas do MDB e, depois, do brizolismo no governo do Rio de Janeiro, lideranças do Comando Vermelho se afirmaram, posteriormente, em comunidades como José Carlos dos Reis Encina (“Escadinha”) no Morro do Juramento; Denir Leandro da Silva, o “Denis” da Rocinha; Paulo Roberto de Moura Lima, o “Meio Quilo”, do Jacarezinho e Rogério Lemgruber, o “Bagulhão”, na Favela do Rebu na Zona Oeste. Este último, juntamente com José Carlos Gregório, o “Gordo”, teve um papel fundamental na organização do CV.
Todas essas lideranças do tráfico tinham práticas assistencialistas com os moradores locais. “Denis” chegou a fazer de sua amante a presidente da Associação de Moradores da Rocinha. Esse foi um exemplo, copiado por outros líderes dos tráficos que, depois, colocavam pessoas próximas à frente de entidades do movimento comunitário, no momento em que o último passava por um rico processo de construção. Quando “Denis” foi preso, em final dos anos de 1980, os moradores da Rocinha fecharam o trânsito protestando pela sua libertação.
O assistencialismo veio também da observação dos presos comuns sobre o discurso e prática dos presos políticos, nos anos de 1970. E, na sombra do desmonte do serviço e das políticas públicas nas comunidades, o lumpesinato organizado se consolidou nas favelas. Agregou-se a essa situação, nos anos de 1980, o Rio de Janeiro iniciou um processo de desindustrialização, sucedido nos anos de 1990, pelo o processo de privatização de grandes estatais, atingindo em cheio a antiga capital do país, que entrou em decadência econômica.
Nesse contexto, existia nas comunidades uma “terceirização” por parte do Estado burguês para que o tráfico assumisse determinadas funções assistenciais, o que perpassou os anos de 1980 e perdurou, em bem menor grau, até os anos de 1990. Como reflexo desse primeiro momento, um samba muito tocado nas rádios nos anos de 1980, cantado por Bezerra da Silva, “Meu bom juiz”, pedia a libertação de Escadinha. Inclusive, este, através do seu pai, o “Chileno”, chegou a apoiar, indiretamente, candidaturas proporcionais até do PT, em 1986.
Ainda na década de 1980, a partir de uma dissidência do CV, surgiu o Terceiro Comando. A disputa entre essas facções acabou diminuindo, em muitas áreas, o assistencialismo, à medida que as facções se tornaram mais puramente empresariais e violentas, centrando menos na “legitimidade social” e mais no controle territorial e lucro.
Foi nesse período, com a morte ou prisão das primeiras lideranças do CV, que surgiram novas lideranças do tráfico como Nem da Rocinha; Adlas Ferreira, o “Adão” de Vigário Geral; Flávio “Negão” também de Vigário; Orlando Jogador, do Complexo do Alemão; Elias “Maluco” da Vila Cruzeiro; Marcinho VP no Complexo do Alemão; Fernandinho na favela Beira-Mar de Duque de Caxias. Também apareceram lideranças rivais como Robertinho de Paradas Lucas, do Terceiro Comando, e Celsinho da Vila Vintém e Uê, do Morro do Adeus que, em 1998, formaram a facção Amigo dos Amigos (ADA), a qual o Terceiro Comando se juntou.
Uma mostra, de que o controle territorial das comunidades e lucro oriundo desse controle deu um salto, foi a Chacina de Vigário Geral, em setembro de 1993, com 21 trabalhadores mortos pela PM, em resposta à morte ordenada pelo tráfico comandado por Flávio “Negão” de 4 policiais. Outro exemplo dessa mudança de qualidade foi o assassinato do repórter da Rede Globo, Tim Lopes, em 2002, na Vila Cruzeiro, a mando de Elias “Maluco”.
Somou-se, à luta do crime organizado por mais controle territorial e lucro, a concorrência com as milícias (que começaram no final dos anos de 1990, em Rio das Pedras, Jacarepaguá e se espraiou para Campo Grande e Santa Cruz), que também exploram economicamente as comunidades. Esse fato mudou ainda mais a dinâmica do “controle social” que o tráfico fazia nos anos 1980. Inicialmente, as milícias combatiam o tráfico e ofereciam uma “segurança” (embora coercitiva), o que alterou de vez a capacidade do tráfico de realizar qualquer tipo de assistencialismo, passando para a política de submissão da população local.
O assassinato de Uê por Fernandinho Beira Mar e a capitulação de Celsinho da Vila Vintém à Beira-Mar fizeram com que o Terceiro Comando ressurgisse como Terceiro Comando Puro (TCP). Entretanto, depois, parte do TCP formou o “Complexo de Israel”, que hoje controla Vigário Geral, Parada de Lucas, Cidade Alta e outras comunidades. Sua principal liderança é Álvaro Malaquias Santa Rosa, o “Peixão”, que ergue bandeiras de Israel nas áreas sob o seu comando e manda estampar Estrelas de David nos muros para impor o seu controle territorial, em base à submissão da população local. Nessa prática está incluída a cobrança de “taxas” por serviços, como transporte, gás e até mesmo pelo direito de morar no local, funcionando como uma forma de extorsão.
A expansão do crime organizado no Brasil (carioca) e a submissão violenta da população
De acordo com a ONU, o tráfico de drogas mundial movimenta anualmente de 400 a 500 bilhões de dólares, um dos negócios mais lucrativos do capitalismo na sua fase decadente e que reflete a sua barbárie. Os verdadeiros chefes desse rendoso empreendimento estão no asfalto e não nos gerentes de boca de fumo, nas comunidades e favelas. No Brasil, hoje, o Comando Vermelho atua no Distrito Federal e em 25 estados, deixando, há muito tempo, de ser uma organização regional.
Os negócios do CV e seu esquema financeiro bilionário variam de tráfico de armas; lavagem de dinheiro através de empresas de fachada e criação até de banco digital; revenda de combustíveis; garimpo ilegal; contrabando de cigarros e bebidas e empreendimentos imobiliários. Age como faz o Primeiro Comando da Capital (PCC) de Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, que usou (e enriqueceu) os altos executivos do mercado financeiro da Avenida Faria Lima, em São Paulo, para lavagem de dinheiro e para movimentar 52 bilhões entre 2020 a 2024, somente na venda de combustíveis.
Nessa disputa intensa entre as facções do crime organizado prevalece a política de controle sobre os territórios dominados, em base a submissão violenta da população envolvida. O Estado burguês no Rio de Janeiro, que através das suas autoridades governamentais e dos seus agentes policiais fizeram, ao longo de décadas, acordos e divisões de tarefas com o tráfico e suas facções e/ou com os milicianos, e/ou com os “banqueiros” do jogo do bicho, hoje têm respondido o problema do controle de territórios pelo tráfico com a política de barbárie e chacinas nas favelas e comunidades.
Foi assim em 2021, no Jacarezinho (31 mortos), no Complexo da Penha, em 2022 (23 mortos) e Manguinhos, em 2022 (6 mortos). Agora foram 121 mortos, sendo 4 policiais, superando em muito, todas as chacinas anteriores. Mais de 60 mortos foram assassinados com tiros na nuca e que caracteriza a execução de prisioneiros pelos policiais, contrariando os princípios mais elementares da Convenção de Genebra. As câmaras, nas roupas de parte considerável dos agentes envolvidos na operação no Alemão e na Penha, foram retiradas com a certeza da impunidade. A Defensoria Pública sequer pode acompanhar as perícias nos corpos dos mortos no Instituto Médico Legal (IML), em que até um motoboy sem antecedentes criminais foi degolado.
A população de comunidades e favelas, em expressiva maioria, tem apoiado esse tipo de barbárie porque, equivocadamente, acredita que somente assim se livrará da barbárie do tráfico. Cumpriu um papel importante na massificação dessa falsa ideia os grandes meios de comunicação da burguesia que exaltaram a ação criminosa do dia 28 de outubro, para que ocorram futuras chacinas e intimide a população pobre, precarizada, preta e periférica. É a chamada eliminação da “população sobrante” do capitalismo decadente, seja no Complexo do Alemão e da Penha, seja com os palestinos na Faixa de Gaza.
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Nos apoiando nas últimas quatro décadas, sabemos que toda essa campanha do governo e dos meios de comunicação é mais uma grande mentira. A miséria, os desmontes dos serviços públicos e o trabalho precarizado crescerão sob o capitalismo decadente para tornar toda e qualquer comunidade produtora de jovens desesperançados em bucha para o tráfico ou qualquer outro setor do crime organizado.
Mas, para fazer esse discurso como contraponto à narrativa dominante é preciso constatar que a própria esquerda sistêmica há décadas abandonou o trabalho de organização, politização e mobilização das favelas e comunidades (que chegaram a ser forte no final dos anos de 1970 e 80). Hoje o trabalho que restou sobre esses locais é usado, de dois em dois anos, para pedir votos nas eleições burguesas. Além disso, a esquerda sistêmica incorpora um discurso de como administrar a barbárie capitalista nas comunidades, com ênfase no trabalho de inteligência da polícia, por exemplo.
A própria esquerda anticapitalista anda completamente marginal do que acontece dentro das favelas e comunidades, pois não tem sequer essa inserção social. Ainda que existam, hoje, formas de resistência à barbárie policial (Mães de Manguinhos, Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, Rede de Mães e Familiares de Vítimas de Violência da Baixada Fluminense).
É preciso, portanto, um longo trabalho de recomposição, sem fórmulas prontas, com humildade e muito cuidado. Ainda mais que esse trabalho se dará sob o terreno minado em que se transformaram as comunidades, ora pela presença do crime organizado (tráfico e milícias), ora pela presença massiva do Mercado da Fé, os mesmos que oferecem também a suposta ascensão social à juventude pobre das comunidades, em troca da conivência e convivência com a barbárie social.



