Os EUA gostam de falar de seu racismo. Gostam de mencionar a luta por direitos civis de Malcolm X, Luther King Jr. e dos Panteras Negras. Também gostam de pensar sua escravidão em filmes como Django, em obras como A Cabana de Pai Tomás e E o Vento Levou.
A “grande democracia” estadunidense se faz dessa contradição e convive muito bem com isso. A indústria cultural, de modo geral, acompanha esse modus operandi. Enfim, é uma sociedade que não nega o racismo, inclusive, até há pouco tempo era legalizado.
Diante da legítima ira e revolta por conta do recente assassinato de George Floyd, no primeiro momento, a cobertura na imprensa burguesa e nas redes sociais foi de acusar o movimento de violento. Mas, com a massificação e o apoio que a luta foi ganhando essa imprensa passou a disputar o movimento e reforçar a “boa intenção” dos protestos, que deveriam ser pacíficos e de congraçamento de raças.
Os protestos pacíficos deviam ser apoiados e os radicalizados não. Uma forma de institucionalizar as mobilizações para os manifestantes terem paciência e esperar as leis mudarem por cima.
Uma cena símbolo dessa imagem construída pela mídia é a do policial branco se ajoelhando com os manifestantes e admitindo o erro: Era um ato isolado, a polícia de Minneapolis estava “com eles” e que havia manifestantes de fora da cidade provocando tumultos. A polícia de Miami também fez algo assim: Agentes se ajoelharam e rezaram com os manifestantes.
O retrato que a mídia mostra é do policial pacificador em oposição ao manifestante radical que, para a mídia, também cometeu um homicídio violento. Sabemos que a polícia estadunidense é tão pacífica como Duque de Caxias que “pacificou” os índios e como as UPPs “pacificaram” as favelas do Rio de Janeiro.
Nessa ideia de “ganhar esses movimentos” e impedir a sua radicalização até mesmo o primeiro ministro britânico, Boris Johnson, e Barack Obama, ex-presidente estadunidense, apoiaram a luta mas, pedindo calma, paciência e que fossem pacíficas.
Daí o perigo de cooptação da fúria negra e de deslocá-la para a passividade e a institucionalidade. De outro lado, é preciso dar uma batalha para a conscientização de que a posição desfavorável que negros e negras ocupam pelo mundo afora tem por razão o capitalismo, sistema de classes, em que os exploradores (re)inventam vários mecanismos de permanência da opressão que lhes favorece.
A associação da radicalidade das lutas ao vandalismo está na verdade defendendo a propriedade privada no lugar da vida. Os chamados de vândalos ateiam fogo em ícones do aparato do mesmo Estado burguês assassino: viaturas policiais, delegacias, bancos e mesmo vitrines de lojas das grandes marcas.
Sabemos que o sistema não será derrotado só por ações como essas, mas as compreendemos como expressão da revolta daqueles que há séculos sofremos racismo, extermínio, efeitos da desigualdade social e da violência policial no cotidiano.
A “democracia” construída sobre sangue de povos
A violência policial contra a população negra estadunidense não dá trégua. Violência e mortes contra negros e negras seguem constantes e quando se é necessário e se “têm a sorte” de julgamento, há quase 100% de chance de serem condenadas/os por júris formados majoritariamente por brancos.
Ainda vigora a lógica do apartheid. Apenas formalmente extinto com o movimento pelos Direitos Civis dos anos 60, na prática, continua muito vivo nas mentes racistas, nas mortes provocadas pela polícia, no encarceramento em massa, etc.
O mais recente episódio (infelizmente não será o último) e que ganhou repercussão mundial deu-se no dia 25 de maio.
George Floyd, negro, 46 anos, recentemente desempregado, foi abordado por policiais brancos. A acusação é de ter tentado passar uma nota falsa de U$20. Reluta em sair do carro. Está desarmado. É deitado no chão. O policial Derek Chauvin, veterano de guerra, pressiona seu pescoço com o joelho até ser asfixiado. Essa morte dolorida é similar a outra, também famosa, de Erick Garner, em 2014. Ele também morreu suplicando por não conseguir respirar.
Respirar em paz deve ser o maior anseio de negros e hispânicos na “maior democracia” burguesa do mundo, em que os povos indígenas já estão praticamente extintos. Matar povos é a marca dessa chamada democracia.
Fúria Negra: um processo que extrapolou as fronteiras estadunidenses
Primeiro nos Estados Unidos: Houve manifestação em vários estados e cidades. Milhares em cada uma delas. Negras e negros cansados de serem as vítimas preferenciais se rebelaram. Em Minneapolis queimaram a delegacia de polícia.
Não restam dúvidas que os protestos iniciados com a morte de Floyd influenciam protestos no Brasil também. Negros e negras passam pela mesma situação.
A violência policial continua firme e forte durante a quarentena nas favelas. Ações de distribuição de cestas básicas chegaram a ser interrompidas por operações da polícia, sendo que uma resultou na morte de um rapaz de 18 anos, João Victor. A grande comoção em torno do assassinato do menino João Pedro de 14 anos, atingido por um tiro de fuzil enquanto brincava em casa, levou os movimentos sociais novamente às ruas no dia 31 de maio.
Seguiram atos em Curitiba e Manaus clamando “Vidas Negras Importam”. Depois, em outros estados, os chamados por torcidas organizadas com a tônica antifascista. E no último domingo, 7 de junho, atos importantes em várias capitais do país, contra Bolsonaro e contra o racismo com importante participação dos movimentos negros do país.
Mesmo com a proibição de manifestações por causa da covid19, em Paris, teve uma gigantesca manifestação contra o racismo. Também teve repressão policial com bombas e gás lacrimogêneo. Esta manifestação coincidiu com outra já marcada pelo comitê de apoio à família de Adama Traoré, (francês de origem Mali, morto pela polícia em 2016, aos 24 anos). Os policiais ainda não foram julgados, mas a perícia oficial já indicou que eles não têm culpa.
Nesse fim de semana também ocorreram manifestações na Inglaterra, Holanda, Espanha, Itália, África do Sul e até mesmo no Japão ocorreu manifestação contra o racismo, todas reunindo milhares de pessoas.
Estados Unidos e Brasil: racismo e repressão policial contra população pobre
A polícia de Minnesota (estado onde fica a cidade de Minneapolis) é sete vezes mais violenta contra a população negra do que com brancos. Essa é a realidade geral dos Estados Unidos. Hoje há mais negros presos do que escravizados em 1850.
Essa realidade foi retratada na série “Olhos que Condenam” que conta a história de 5 adolescentes negros do Harlem (Nova Iorque) injustamente acusados de um estupro no início dos anos 90. Foram interrogados separadamente, sem a presença de seus responsáveis, foram arrancadas confissões falsas e condenados entre 6 e 13 anos de prisão. Todos passaram parte de sua juventude na cadeia. O verdadeiro estuprador foi preso em 2002.
O Harlem é um bairro com cerca de cem anos e se configurou como reduto da população afro-americana por ser mais barato para se morar. Em decorrência disso, foi sendo precarizado tanto na estrutura educacional quanto na de segurança pública. É uma representação da questão racial/social nos Estados Unidos.
A ação policial dos Estados Unidos contra os negros é parte de uma política de Estado, implementada com a chamada “tolerância zero” e com a “guerra às drogas” verdadeiros pretextos de policiar, prender, condenar e até matar negros e negras. Dos mais de 2 milhões de presidiários nos Estados Unidos, calcula-se que 70% são negros ou latinos (outra comunidade perseguida pela polícia).
No Brasil e em vários países do mundo a realidade é bem semelhante. Por aqui, mesmo que não seja com esse nome, a política de “tolerância zero” também é implementada. A maioria de abordados (sempre suspeitos), mortos pela polícia, vítimas de encarceramento em massa, desempregados, trabalhos precários, piores salários e longo etecetera é de negros e negras.
Mas, há uma diferença entre Estados Unidos e Brasil. Por aqui o racismo é velado, disfarçado e há uma ideologia de “democracia racial” em que todos dizem conviver de forma harmoniosa e igualitária. A realidade é que “a verdadeira natureza de sua estrutura social, cultural e política: é essencialmente racista e vitalmente ameaçadora para os negros” (Abdias do Nascimento). Já nos Estados Unidos, o racismo é aberto e, como dissemos acima, já foi até legalizado.
O COVID e a situação dos negros e negras nos Estados Unidos
A pandemia está servindo para evidenciar ainda mais a relação entre racismo e desigualdade social nos Estados Unidos. Em Louisiana, 70% das mortes pela doença ocorreram na população negra. Em Chicago, onde 32% da população são de negros, 67% das mortes são de negros. No Condado de Milwaukee, onde o contingente de afro-americanos é de 26%, 73% das vítimas são negras. Detroit e Nova Orleans também computam grande índice de mortalidade de afro-americanos pela doença.
O que se depreende interpretando os números é que há um impacto da pandemia sobre as populações mais vulneráveis, que não possuem assistência médica e são forçadas a irem trabalhar por seus patrões mesmo com doenças pré-existentes como diabetes, obesidade, asma e problemas cardíacos. A maior parte dessa classe trabalhadora empobrecida e sem condições de cuidar de suas doenças por ser alto o custo da Saúde estadunidense, é negra.
Luta Antirracista: questão de classe
No caso dos Estados Unidos, existe uma tentativa tanto de democratas quanto de republicanos em descolar as reivindicações antirracistas das crítica e exigências ao capitalismo. Para nós, o racismo somente se explica pelo próprio desenvolvimento, estrutura e funcionamento do capitalismo.
Como disse Malcolm X: “não existe capitalismo sem racismo”. E não é de agora. A escravização de seres humanos negros e negras foi fundamental para a consolidação da burguesia enquanto classe social e para sua permanência no poder ainda hoje.
As políticas afirmativas são muito importantes para a sobrevivência de parcela da população negra, necessitam fazer parte da luta cotidiana, mas não eliminam as causas da desigualdade e do racismo na sociedade capitalista.
As bases dessa sociedade não se desmancham no ar facilmente, precisamos de uma revolução social para acabar definitivamente com as diferenças e que vá além da retórica da igualdade de direitos sociais e políticos.
Muito já está sendo ensinado nas escolas, mas não é assimilado na prática. Falta a última trincheira: precisamos derrubar as classes sociais. É por causa dessa sociedade dividida em classes sociais que negros, descendentes de povos que serviram de mão de obra escrava, mesmo sendo reconhecidos como “livres para vender sua força de trabalho” continuam sendo obrigados a cumprir o papel de fornecimento de mão de obra desvalorizada e barata.
O mito da democracia racial no Brasil não se justifica pela miscigenação, pois a crueldade do racismo se mantem. Vivemos aqui como em todo o mundo uma realidade em que o racismo é parte da estrutura da sociedade capitalista, precisamos lutar por solução estrutural.