Júlio Santos
Há uma profusão de discussões sobre junho de 2013: artigos, vídeos, documentários, entrevistas, livros, palestras, debates. Isso não é à toa, afinal trata-se de um processo de luta sem igual no país e com um furor e um alcance que causou fissuras em todos os poros da sociedade burguesa brasileira. Depois daquele junho, para o bem ou para o mal, tudo mudou no Brasil. Portanto, repito, não é à toa que os diversos atores políticos procurem explicar o que se passou de acordo com o seu modo de ver, com sua localização social e com o seu projeto político. Quase tudo já foi dito com maior ou menor reverberação a depender do alcance do sujeito político que diz.
Por isso, já de cara, gostaria de me colocar no campo analítico daqueles que defendem o caráter essencialmente progressivo das jornadas que abriram aquele inverno brasileiro e indicar que o ambiente econômico, social e político que a geraram ainda está aí, podendo ser palco para acontecimentos semelhantes muito mais radicalizados, organizados e programaticamente mais definidos, incorporando a experiência daquele junho e de tantos outros que ocorreram mundo afora depois (a exemplo, principalmente, dos Coletes Amarelos na França e das jornadas da primavera chilena de 2019).
Gostaria de sublinhar também que me valerei, nessa discussão, do ferramental teórico, analítico e metodológico herdado do marxismo revolucionário.
Junho de 2013 não foi um acontecimento isolado. Do ponto de vista social, é parte resultante e, ao mesmo tempo, fomentadora de um processo de lutas da mesma natureza que ocorria no Brasil (2013 era então o ano com o maior número de greves desde o fim ditadura) e no mundo e, só a partir dessa noção de totalidade, poderemos nos aproximar de um entendimento da sua magnitude e da sua dinâmica.
Do ponto de vista econômico, valendo-me de uma terminologia do pensador marxista húngaro, István Mészáros, junho é resultante direto da crise estrutural do capitalismo, cuja expressão aparente mais aguda em nosso século foi a crise das subprimes1 no ano de 2008.
Não é necessário que se tenha lido o Livro 1 de O Capital e conhecer a fundo a Teoria do Valor em Marx para se perceber que o capitalista empreendedor não controla os custos dos insumos e das matérias primas que são fornecidos por outros capitalistas para entrarem no processo de produção da sua mercadoria. Dessa forma, para aumentar seu lucro de forma a gerar excedente para reinvestir só lhe resta mexer (reduzir absoluta ou relativamente) no custo da força de trabalho que compra, ou seja, nos salários dos trabalhadores que contrata.
Ao mesmo tempo, o Estado precisa reduzir seus custos (pessoal, salários e direitos) para formar reservas maiores do fundo público destinadas a salvar o capital das debacles sucessivas (crise das subprimes, falência de bancos e conglomerados financeiros, corrupção generalizada, não atratividade de investimentos, etc) pela via do auxílio direto ou pela remuneração do capital via mecanismos de transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos (pagamento de juros da dívida, pesados tributos sobre o consumo, manobras inflacionárias, etc).
Porém, mesmo a redução do custo da mão de obra tem limites de várias naturezas, sendo o mais importante o limite imposto pelo grau de luta e organização dos trabalhadores. Mas há limites legais que perduram por muito tempo (salário mínimo, pisos salariais corporativos), há limites resultantes de ciclos sazonais de oferta e procura de mercadorias, etc.
O desenvolvimento tecnológico, parcial e momentaneamente, ajudou a resolver esse problema com o aumento vertiginoso da produtividade ocorrido da década de 70 do século passado para cá. No entanto, o aumento da produtividade representou um aumento também vertiginoso da exploração, reduzindo o custo social da força de trabalho e, consequentemente, gerando um excedente muito maior que não retornava para a produção real de bens e serviços, não criando postos de trabalho suficientes para absorver a mão de obra jovem que entrava no mercado e jogando para o desemprego estrutural centenas de milhões de trabalhadores em todo o mundo que passaram a viver de programas sociais aviltantes fornecidos pelo Estado, da solidariedade da família ou de vários movimentos comunitários, religiosos e coletivos, ou do subemprego precarizado e dos trabalhos por conta própria – também subempregos que os deixam expostos à própria sorte (Uber, App, etc).
Do ponto de vista social, esse fenômeno mundial de aumento da exploração gerou um nivelamento por baixo de salários e direitos que significou uma dinâmica de pauperização absoluta e relativa generalizada do proletariado e de camadas médias da sociedade2 ao mesmo tempo em que criou um exército de desempregados estruturais, excluídos permanentemente de qualquer possibilidade de retornarem ao mercado formal de trabalho3.
O processo de exclusão social e pauperização absoluta e relativa, veio acompanhado da deterioração da vida nos grandes centros urbanos de todo o mundo.
É falso e anacrônico, portanto, o argumento usado pelo setor majoritário da esquerda institucional (PT) de que a situação no Brasil e de seu povo estava muito bem quando eclodiram as jornadas de junho4. Mesmo as condições minimamente melhoradas de parcela significativa dos mais pobres, que saíram da miséria (absoluta e relativa) para uma situação de pobreza nos dois primeiros mandatos de Lula, já estavam em processo de deterioração nas grandes cidades, onde ocorreu o epicentro das explosões de junho. Por exemplo, a tarifa média dos ônibus subiu 70% acima da inflação entre 2003 e 20125 na cidade de São Paulo e o preço dos imóveis, entre 2010 e 2014 subiram mais de 300%6, o que foi acompanhado de perto pelo preço dos aluguéis, expulsando, ou colocando em vias de serem expulsos, contingentes imensos da classe média para as áreas de periferia, no fenômeno conhecido como gentrificação.
Esse, em grossas linhas, é o ambiente econômico sobre o qual, do início dos anos dez deste século para cá, se gestaram centenas de lutas e rebeliões sociais espontâneas ao redor do mundo, convocado geralmente pelas mídias sociais e de característica semi-insurrecional (ou seja, explosões sem direção reconhecida das velhas estruturas políticas e sindicais), que partiram geralmente de pautas mínimas e urbanas (aumento de passagens, preço de combustível, defesa de parques, modo de usar o véu, etc) e unificavam o descontentamento e a ira social multitudinários para, invariavelmente, terminar questionando os regimes políticos cujas instituições são as responsáveis pela manutenção da ordem de espoliação, de exploração, de miséria, de desemprego, de condições de vida indignas e ausência generalizada de perspectivas.
Para citar apenas alguns desses movimentos: Tunísia, iniciando a primavera árabe em 2010; Egito, Líbia, Iêmen, Síria, Occupy Wall Street nos EEUU, Movimento dos Indignados na Espanha em 2011; Turquia e Brasil em 2013; Ucrânia em 2014; Coletes Amarelos na França em 2018; Colômbia em 2021; Israel em 2022 na revolta do véu; Chile em 2019; Cazaquistão em 2022.
Mesmo com toda essa disposição de luta e com uma admirável energia revolucionária, esses movimentos não conseguiram forjar uma organização e um programa que permitissem com que dessem um salto rumo a um processo de ruptura com as formas de dominação do capitalismo e abrir uma dinâmica de transição rumo à ruptura com o próprio modelo de exploração e opressão do capitalismo. Mesmo onde o proletariado organizado enquanto classe tenha participado, como no Chile de 2019, ou tenha dado a dinâmica já no início do processo, como na Colômbia de 2021, com o seu método próprio de luta – a greve geral –, o movimento esbarrou no limite da ausência de uma vanguarda organizada de lutadores revolucionários conscientes, inseridos na base do movimento, que possibilitasse a disputa do rumo da luta que, invariavelmente, foi desviado, com pautas rebaixadas aos limites da não ruptura da ordem estabelecida, para “negociações” que paralisavam as ações das massas ou para os processos eleitorais da democracia representativa burguesa com todos os seus anteparos e distorções (Brasil, Chile, Colômbia, etc). Dessa forma, a dinâmica revolucionária dessas rebeliões era sufocada geralmente com derrotas momentâneas que eram vergonhosamente creditadas ao próprio movimento.
Dessa forma, junho de 2013, na trilha das jornadas coirmãs que ocorreram mundo afora, mostraram o limite da ausência de um programa e de uma vanguarda que conscientemente abraçasse a bandeira da ruptura com o regime e avançasse na transição para um programa de ruptura com o sistema capitalista; mostraram também a falta de serventia, para o avanço do movimento, das direções hoje existentes nos aparatos sindicais e políticos, como a “esquerda institucional”, contra a qual e apesar da qual as jornadas de junho se constituíram; mostraram também que, lamentavelmente, no campo da esquerda revolucionária ainda não amadureceu uma alternativa à altura de suas necessidades e que entenda que acima das disputas pequenas por palavras de ordem, bandeiras e microfones, está a necessidade inadiável de se estar colado ao dia-a-dia dos de baixo, construindo junto e unitariamente o programa e as lutas – única condição para ganhar a confiança necessária para, em momentos decisivos, fazer a disputa estratégica pelos rumos da revolução; e, o mais importante, mostrando que a trapaça e as arapucas armadas pela esquerda institucional e pela direita, que soube aproveitar o vazio político, não conseguiram matar a energia revolucionária trazida pelo movimento e que, mais dia, menos dia, junho voltará.
Uma Polêmica Necessária
Há uma posição com crescente influência na esquerda institucional que, oposta pelo vértice a que apresentei acima, diz que junho de 2013 foi um fenômeno regressivo, um movimento articulado e manipulado pelo imperialismo americano contra a então presidenta Dilma Roussef, valendo-se de práticas ultraconspirativas do deep state na deep web com instrumentos da chamada “guerra híbrida” para ajudar a fabricação das chamadas “revoluções coloridas” – movimentos de massa financiados e dirigidos por setores pró-americanos que buscam desestabilizar governos pertencentes (de acordo com essa corrente) a um campo progressista.
Nessa análise o movimento de junho de 2013, contra o ordenamento político, social, econômico e cultural, vigente no Brasil desde o fim da ditadura militar, seria o responsável pela Lava-Jato, pelo impeachment (golpe) de Dilma, pela prisão de Lula e pela ascensão da extrema direita que culminou com a eleição de Bolsonaro. Aqui terminaria a história. A posterior anulação da sentença de Lula, os dissensos do STF e do TSE com Bolsonaro, a constituição da Frente Ampla e a nova eleição de Lula, não se explica em que cenário macro conjuntural estariam. A guerra híbrida teria sido derrotada? A guerra híbrida mudou de lado e passou a ser contra Bolsonaro? O imperialismo vacilou e deixou passar a volta de Lula sem fazer a guerra híbrida?
Ou seja, é um conceito sem pé nem cabeça que para nada serve para quem quer analisar a realidade com seriedade e rigor. Serve, sim, para escamotear os verdadeiros responsáveis pelos acontecimentos e pelas derrotas que, invariavelmente, se encontra na análise da luta de classes.
Se adensarmos nossa análise, sem a busca de esquematismos que nos satisfaçam com explicações banais e simplificadoras do real, veremos também que o processo de crescimento da ultradireita no Brasil é parte de um processo mundial que está diretamente ligado à profunda crise do capitalismo mundial e que deu um salto de qualidade em 2008 com a crise das subprimes.
O fascismo, assim como todo regime de extrema-direita, é uma variante de regime (e de governo) da gestão capitalista da sociedade que surge em momentos de grave crise de dominação burguesa (guerras, ascenso revolucionário do movimento de massas, profunda crise da economia mundial e/ou nacional).
A reorganização político-programática da extrema direita já vinha se dando em nível mundial desde o início dos anos 10 desse século, usando a tática de disputar governos locais com a bandeira do anticomunismo, com um programa contra os imigrantes, por uma pauta de costumes reacionária, e com propostas que conjugam um ultraliberalismo nas relações trabalhistas e no mercado interno com um nacionalismo antiglobalizante nas relações internacionais.
Ou seja, assim como ocorreu na grave crise que culminou no crash da bolsa de 1929, a burguesia imperialista mundial está dividida quanto à melhor resposta que o Estado deve dar à crise e à ambiência mais favorável à revolução que ela abre. A crise econômica atual é, desde uma ótica global, superior àquela de 1929 e abriu de novo a disputa por um projeto político de gestão do Estado burguês entre a ultradireita e a direita “liberal”.
Sem entrar em maiores detalhes, ainda que grupos organizados, infinitamente minoritários, tenham estado presentes nas manifestações de junho de 2013 e tenham protagonizado pequenos incidentes com setores da esquerda que ganharam proporções inversamente proporcional ao peso que de fato tiveram, ainda que o imperialismo tenha atuado de forma aberta e sub-reptícia junto a setores que estiveram nas manifestações, o que explica verdadeiramente o deslocamento de setores massivos da população brasileira, incluindo amplos setores do proletariado, para a extrema direita foram três fatores, dois de natureza objetiva e outro de natureza subjetiva, que se foram combinando no concurso dos acontecimentos:
De natureza objetiva temos o estelionato eleitoral de 2014, com a nomeação do Banqueiro Joaquim Levy para ministro da fazenda e a promoção de um rigoroso ajuste fiscal que reduz o seguro desemprego, ataca as pensões previdenciárias e promove uma contração da economia e explosão do desemprego (8,4% em 2015 contra 6,9% em 2014) e, no mesmo ano, a Lava-Jato chega ao alto escalão da PETROBRÁS e os escândalos de corrupção chegam a figuras de ponta do PT, com a prisão e condenação do deputado André Vargas, a prisão do ex-tesoureiro do PT, João Vaccary Neto, e a denúncia contra o ex-chefe da Casa Civil do Governo Lula, José Dirceu.
De natureza subjetiva, surge Bolsonaro que empalma o sentimento antissistema que brotou das ruas em 2013 e constrói uma candidatura por fora dos partidos e das mídias tradicionais, das alianças políticas e, distanciado e crítico do Supremo Tribunal Federal, adota um discurso contra os jogos políticos feitos no Congresso Nacional.
“Diante da crise, o país foi colocado em uma encruzilhada: acelerar o programa distributivista, como havia sido defendido na campanha da reeleição presidencial, ou aceitar a agenda do grande capital, adotando medidas de austeridade sobre o setor público, os direitos sociais e a demanda, mais uma vez na perspectiva de retomada dos investimentos privados. O governo enveredou pela segunda via.
O ajuste fiscal, além de intensificar a tendência recessiva, foi destrutivo sobre a base social petista, gerando confusão e desânimo nos trabalhadores, na juventude e na intelectualidade progressista, entre os quais se disseminou a sensação, estimulada pelos monopólios da comunicação, de estelionato eleitoral. A popularidade da presidenta rapidamente despencou. As forças conservadoras sentiram-se animadas para buscar a hegemonia nas ruas, pela primeira vez desde as semanas que antecederam o golpe militar de 1964.”
As aspas anteriores que buscam explicar as multidões que tomaram as ruas em 2015, convocadas pela extrema direita, e abriram as portas para o impeachment (golpe) de Dilma, não são de nenhuma corrente mais à esquerda no universo da base de apoio ao PT. Antes, são partes integrantes da Resolução sobre a Conjuntura aprovada no Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores em 17/05/2016. Totalmente diferente da trágica análise feita agora pela revista FOCUS, da Fundação Perseu Abramo7, na sua edição de 09/06/2023, sob o título “As Jornadas do Abismo”, onde, amparada no já demonstrado falso argumento de que “O Brasil vinha se conduzindo em 2013 como uma nação em franca ascensão, com economia em alta, desemprego em baixa e muitas oportunidades para todos”, afirma de forma leviana e acusatória contra a rebelde geração daquele junho que “Nas franjas daquele movimento, o ovo do fascismo e da extrema-direita começava a ganhar corpo.”
Outro artigo da mesma edição, com o título “De junho de 2013 a novembro de 2014” vale-se da linguagem conspiratória, onde fatos são jogados e relacionados sem nenhuma prova com o único e exclusivo objetivo de gerar medo e evitar que se faça a verdadeira discussão: O PT passou a ser o partido da ordem, assemelhado a todos os demais, governando para se manter no poder sustentado no projeto falido da Nova República, fundada nas hostes palacianas com o objetivo de derrotar o ascenso das “Diretas Já!” e pactuar um modelo de exploração e opressão do povo trabalhador e dos demais setores explorados e oprimidos da sociedade brasileira. Por isso optou pelo ajuste fiscal de Levy ao invés da luta e da organização dos de baixo, ou seja, optou pelos banqueiros e pelo mercado mesmo que com o ônus do emprego e da mesa dos trabalhadores.
Por fim, vale deixar claro para esses senhores adeptos da famigerada “tese” da “guerra híbrida” e das “revoluções coloridas”, da “teoria campista” (substitutiva da luta de classes) e das conspirações geopolíticas realizadas pelo deep state na deep web em substituição ao combate implacável e cotidiano do proletariado mundial contra toda forma de exploração e opressão imperialistas; vale lembrar para esses senhores que o imperialismo ataca e fustiga de todas as formas a luta dos trabalhadores e a atuação dos lutadores e revolucionários do mundo desde pelo menos há cerca de 150 anos, quando surge o socialismo científico. Lançar teses de conspirações e guerras híbridas não nos diz nada de novo. Lembro que os patrões estão sempre vigiando, espionando e vasculhando a vida dos trabalhadores, principalmente os que se dedicam à luta pela sua classe. Em 1912, Roman Malinovsky, espião da polícia secreta do Czar russo, entrou para o Comitê Central do Partido Bolchevique, indicado por Lenin, só sendo descoberto e fuzilado em 1918, depois da vitoriosa revolução de outubro de 1917.
O ovo da serpente do fascismo nasceu nos gabinetes e salas do Palácio do Planalto, não nas ruas do Rio, de São Paulo e das demais cidades brasileiras, naquele fantástico junho.
Outra Polêmica Necessária
Outra polêmica necessária é a com a posição, aparentemente mais moderada e centrada, que aparece em textos e entrevistas de setores da esquerda do PSOL e, difusamente, em outras organizações da esquerda revolucionária. Essa posição diz que as jornadas de junho de 2013 começaram como um movimento progressivo mas, com sua massificação, abriu-se uma disputa no interior do movimento entre os setores progressistas e a extrema direita e, por fim, pela inépcia do governo da presidenta Dilma e pela falta de outras alternativas à esquerda que, por surpresa, despreparo ou medo, se colocassem nessa disputa, o movimento acabou derrotado e abriu caminho para o ressurgimento da extrema direita com expressão política de massas.
Do ponto de vista de uma análise marxiana, essa posição é completamente carente de sentido lógico, além de carregar vários erros e/ou inconsistências conceituais, e não resiste à prova dos fatos. Esse setor não lembra ou desaprendeu o beabá da análise marxiana (herdada de Hegel) que nos ensina que “A” é igual a “A”, mas também é diferente de “A”. Não é possível fazer neste já extenso artigo uma discussão sobre lógica, mas basta dar um google em qualquer manual de lógica dialética que encontrarão uma vasta literatura a respeito.
A primeira questão a ser desvelada é que as jornadas de junho não foram um embate entre forças progressivas e extrema direita. Durante todo o tempo, depois que o movimento se massificou após a violenta ação da polícia naquele dia 13/06, o que esteve em disputa, consciente e inconscientemente, foi, por um lado, a luta entre um movimento pela quebra do regime da Nova República e do pacto social conciliatório que saiu do colégio eleitoral e se consolidou em torno da Constituição de 1988, e que era responsável pelos vários descontentamentos presentes nas ruas e, por outro os defensores da ordem, do status qüo e do escoamento do descontentamento para o processo eleitoral de 2014.
Basta ver as palavras de ordem das mobilizações: contra o sistema, contra os partidos, contra a mídia, contra a copa, saúde e educação padrão FIFA, tarifa zero, contra o PT e o PSDB – partidos que naquele momento expressavam a disputa política institucional.
O fato de as energias liberadas em junho de 2013 não terem sido suficientes para derrotar o regime, impor a tarifa zero nas passagens, impor uma nova Constituinte que selasse a morte da Nova República e do pacto social que a sustentou e avançar na conquista de um novo ordenamento político que aprofundasse as conquistas, as liberdades democráticas e as formas de organização dos de baixo, foi uma derrota, mas também não foi uma derrota. Ou seja, a derrota foi relativa a um momento específico.
Podemos considerar como uma derrota nos seus efeitos imediatos que, mesmo tendo conseguido a redução dos 20 centavos na tarifa e uma legislação que garantia, via royalties do petróleo e do fundo social do pré-sal, mais recursos para educação e saúde, fez o movimento refluir e ser direcionado para a via da disputa eleitoral de 2014. A retirada, no dia seguinte, da proposta de um plebiscito por uma Assembleia Constituinte feita pela presidenta Dilma Roussef em 24/06/2013, foi um dos fatores decisivos que levou ao esvaziamento político de 2013.
No entanto, é na dinâmica dos acontecimentos que analisamos as derrotas absolutas e, nesse aspecto, junho de 2013, como expressão explosiva e multitudinária do descontentamento geral de setores explorados e oprimidos, foi apenas o primeiro ato de um processo que permanece aberto: a luta pelo fim da política de conciliação de classes inaugurada com o fim da ditadura militar, por meio do pacto social e político acordado no colégio eleitoral, ao qual o PT viria a aderir posteriormente, após a vitória em executivos municipais, e, a partir de 2003, como política estratégica do partido, após a vitória de Lula para presidência da república.
O não entendimento dessa questão foi o que resultou que o governo do PT e o PT enquanto partido, continuasse fazendo mais do mesmo, o que resultou, e não poderia ser diferente, em todos os problemas que surgiram à frente.
Isso porque o regime fruto do pacto das elites e suas instituições: governo, parlamento, STF, mídias, partidos, eram identificados, com razão, como agentes diretos da implementação de uma política econômica que espoliava os trabalhadores e os despossuídos de toda a sorte e os oprimia por via de seus sistemas arteriais institucional, cultural e psíquico-social.
Basta olhar o número de greves a partir do ano de 2013 para se entender que, em dinâmica, não há derrota do movimento e sim do regime da Nova República que sai gravemente ferido e cambaleante das jornadas de junho, dá um aparente respiro na reeleição de Dilma Roussef em 2014, para logo depois se desbaratar com o impeachment (golpe) da presidenta e, em seguida, a eleição do único candidato que se apresentou como antissistêmico em 2018, lamentavelmente pela ultra direita – Jair Messias Bolsonaro.
A média de greves desde o início do governo do PT em 2003 até 2012 foi de 439 greves por ano, sendo que em 2011 foram 555 greves e em 2012, 879 greves. O ano de 2013 foi o ano que mais greve teve desde que o IBGE começou a tabulação dos movimentos grevistas, em 1984, no fim da ditadura militar: foram 2057 greves, sendo 1112 só no setor privado. Em 2014, novo recorde com 2085 greves, sendo 1012 no setor privado. Em 2015 foram 1964 greves com 996 no setor privado.
Vale destacar ainda as greves gerais de abril de 2017 com adesão de 40 milhões trabalhadores e de junho de 2019 com a adesão de 45 milhões, segundo a CUT.
Ou seja, os números mostram que, diferentemente da propagada derrota de 2013, os trabalhadores e as massas populares não pararam de lutar. Houve sim, a derrota do projeto político da esquerda institucional, centralmente do PT, que na contramão das manifestações das jornadas de junho manteve-se como partido da ordem de um regime apodrecido, recuando da proposta de plebiscito para uma Assembleia Nacional Constituinte – que seria progressivo naquele momento.
Conclusão
Hoje, o PT no governo de hiper alianças tenta reeditar o Pacto Social e uma governabilidade assentada nas mesmas bases da Nova República. A análise metodológica que apresentei acima e que me alinha, em essência, a setores minoritários da esquerda, aponta que essa condução do governo aponta para um trágico desfecho. Os últimos acontecimentos que colocam cada vez mais o governo nas mãos das forças fisiológicas do parlamento para aprovar medidas que buscam dar um ordenamento ao Estado burguês (Novo Arcabouço Fiscal, Reforma Tributária) às custas de uma maior penalização das classes médias e trabalhadoras do Brasil, prepara novas e mais aprofundadas contradições.
A possibilidade real de novos junhos é grande. A experiência e lições tiradas de 2013 e dos vários levantes ao redor do mundo alenta a possibilidade de, no processo de novas explosões, surgir uma nova geração de lutadores com uma visão mais programática e organizativa no sentido da ruptura do regime e da construção de uma alternativa que, na dinâmica da crise, pode apontar para uma saída revolucionária e anticapitalista – mas isso não será espontâneo.
Por outro lado, também temos uma extrema direita, mais organizada e com peso de massas, que não teme dizer seu nome8 e que se mantém com uma postura de oposição sistemática e, fruto da política capituladora do PT e de Lula à frente amplíssima, com seus quadros, seu modus operandi, suas redes sociais e seus canais de propaganda praticamente intactos. Isso coloca um sinal de alerta no horizonte.
Ou os lutadores independentes, a esquerda revolucionária (independentemente de quem é mais revolucionário), os movimentos e coletivos classistas e anticapitalistas se unem desde já na construção de uma alternativa visível e ao mesmo tempo solidamente implantada nas estruturas sociais (fábricas, empresas, comunidades, escolas, favelas e regiões de periferia, assentamentos e zonas de conflito rurais) que nos permitam aparecer como um exército revolucionário capaz de conduzir às conquistas das aspirações do movimento e possibilitar que a nova vanguarda de lutadores dê um salto político-organizativo na consciência em direção à revolução sistêmica anticapitalista, ou podemos, aí sim, conhecer o que é derrota e ter sérios problemas com o fascismo.
Júlio Santos
Membro do Conselho Diretivo do Centro Cultural Octavio Brandão (CCOB)
Participante das reuniões do Coletivo de Coletivos
As opiniões aqui manifestas são de exclusiva responsabilidade do autor
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10/07/2023
1 Empréstimos concedidos a pessoas com alto risco de crédito e que explodiu em 2008 quando houve uma inadimplência generalizada devido ao aumento dos juros americanos.
2 De acordo com Ruy Braga, 93% dos novos empregos criados no Brasil entre 2003 e 2013 tinham remuneração de apenas até um salário mínimo e meio – citado por Vladimir Safatle no artigo “O dia em que o Brasil parou por 10 anos”, página 104, publicado em Junho de 2013 – A Rebelião Fantasma (Editora Boitempo).
3 Artigo publicado na Revista da ABET, v. 14, n. 1, Janeiro a Junho de 2015 por Emanuelle Alícia Santos Vasconcelos e Ivan Targino, sob o título A Informalidade no Mercado de Trabalho Brasileiro: 1993 -2013, dá conta de que, em 2013, “49% das ocupações estavam concentradas no segmento informal” (pag. 141).
4 Veja a Revista Focus, da Fundação Perseu Abramo, edição de 09/06/2023 – A Jornada do Abismo.
5 Conforme comparação entre o histórico das tarifas no estado de São Paulo, encontrado no site da SPTrans ( https://www.sptrans.com.br/tarifas ) e o a inflação acumulada pelo IPCA de 12/2013 (primeiro aumento da tarifa após 2001) e 02/2013 (aumento da tarifa de R$3,00 para R$3,20).
6 Portal G1, Cristiane Cardoso, 26/03/2014 (09h:51) – https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/03/nao-e-hora-de-comprar-imoveis-no-rio-dizem-economistas.html
7 Fundação instituída pelo Partido dos Trabalhadores por decisão do seu Diretório Nacional no dia 5 de maio de 1996.
8 Referência ao título do Livro de Vladimir Safatle: “A esquerda que não teme dizer seu nome”