As eleições para a presidente da Venezuela dominaram os debates na imprensa burguesa e nos círculos políticos na América Latina nesses últimos dias. De um lado, o Conselho Eleitoral declara Maduro eleito e, de outro, a oposição se autodeclara vencedora.
Alguns países europeus (Espanha, França, etc.) e da América Latina (Chile, Brasil, Colômbia e México) solicitaram a divulgação das atas eleitorais. Outros países como Estados Unidos, Argentina, Uruguai, Equador, Costa Rica e Panamá, com governos de direita ou extrema-direita, alegam fraude nas eleições e reconhecem González como presidente eleito.
No Brasil, vários setores da dita “esquerda eleitoral” (PT, PSOL, UP, etc.), movimentos sociais (MST, MTST, etc.) apoiam Maduro como eleito. Partidos de extrema-direita ou de direita (PL, Republicanos, Novo, União Brasil, PSDB, etc.) reconhecem a eleição de González. Parte da esquerda socialista (principalmente trotskistas) também defendem a tese de fraude.
O principal argumento dos defensores de González está na necessidade de apresentação das atas eleitorais, não apresentadas até o momento, e se baseiam em projeções da apuração paralela que apontariam sua vitória.
De todo modo, se Maduro não apresentou provas concretas de sua reeleição, a oposição também não demonstrou provas materiais e como nem Maduro e nem o opositor burguês são confiáveis, entendemos que a hipótese de fraude é real e é provável também que a oposição tenha inflado os dados.
No meio de tudo isso, está a classe trabalhadora sofrendo efeitos e consequências sem ainda ter unido suas forças para impor seus métodos de luta e de forma independente.
Uma das características do governo Maduro é a de impor medidas que dificultem seus opositores concorrem às eleições. Os órgãos eleitorais alinhados com o governo tornam os opositores inelegíveis, interveem nos partidos e o Ministério Público forja denúncias. Enfim, são incontáveis as manobras. No entanto, a oposição burguesa e que é apoiada pelos Estados Unidos tem longa trajetória de golpes e fraudes.
As mobilizações da oposição burguesa
Nessa disputa política, a direita e a extrema-direita venezuelanas com apoio do imperialismo apelaram às mobilizações populares de rua e setores da população deram essa sustentação (como ocorreu no Brasil com Bolsonaro). No entanto, não apareceram reivindicações econômicas, pois nesse aspecto estão de acordo com Maduro.
A crise econômica e social com a queda na renda do petróleo que impactou os serviços públicos, a hiperinflação e o arrocho salarial produziram a desilusão do povo no governo Maduro. E a extrema-direita, mais uma vez, se aproveita dessa situação e inflama o ódio, a xenofobia e o preconceito para se colocar como legítima representante do povo.
A mobilização popular sempre é importante, mas se volta contra o próprio povo quando é a oposição burguesa a liderança do processo, pois são interesses opostos e com uma política burguesa, fortalecendo e sustentando a política do imperialismo no país.
Por isso, é necessário “separar o joio do trigo”: As necessárias e justas reivindicações da classe trabalhadora (emprego, melhores condições de trabalho, salário, etc.) são bem diferentes dos interesses da burguesia (maiores lucros, aumento da exploração, repressão, etc.) que se utiliza de parte da população para chegar ao poder, e depois, não atendem as necessidades do povo e aumentam a repressão.
É importante essa diferenciação, pois os objetivos do imperialismo estadunidense são de retomar o controle econômico e político sobre a Venezuela. E nesse momento que a China e Rússia aproveitam o bloqueio econômico dos Estados Unidos e se colocam como os principais parceiros do governo, a situação fica ainda mais complicada para o imperialismo. Nesse sentido, um governo mais servil facilitaria o seu trabalho.
Assim, é condenável que setores da esquerda que se colocam no campo revolucionário façam coro com essas direções numa política de aliança “todos contra Maduro”, numa espécie de Frente Única com essa extrema-direita e o imperialismo e desconsiderando a necessidade de enfrentar Maduro sem abandonar a independência de classe.
Oposição burguesa, direita e extrema-direita não são alternativas para a classe trabalhadora
González Urrutia foi o candidato oficial da oposição burguesa, tem pouca tradição em disputas eleitorais, se limita a atuar no aparato partidário e nos comícios sequer participou.
Mas, Maria Corina Machado foi a principal figura na disputa eleitoral. É de origem familiar rica e tem atuação política desde o começo do século, participando da ONG Súmate envolvida na preparação do golpe militar contra Chávez em 2002 e que recebia dinheiro de entidades estadunidenses que financiam grupos de direita fora dos Estados Unidos. O discurso de defesa da soberania nacional da Venezuela é só uma fachada, pois aceitou ser representante do governo do Panamá na OEA (uma venezuelana representando o Panamá!), foi recebida pelo George Bush, que apoiou o golpe em 2002, na Casa Branca. Também foi uma das principais lideranças das manifestações de 2014 e 2017, protagonizadas pelos guarimbas (milicianos de extrema-direita) que chegaram a queimar Orlando Figuera por ser negro e parecer chavista, defendeu abertamente a intervenção militar externa na Venezuela, dentre outros ataques. Por fim, mas não menos importante, é uma das signatárias da Carta de Madri (manifesto da Extrema-direita mundial) junto com Eduardo Bolsonaro, Milei, a italiana Meloni, etc.
O seu programa político e econômico é de cunho neoliberal com defesa de privatização ampla, que inclui a petrolífera PDVSA, defende da propriedade privada dos meios de produção e o Estado mínimo.
Maduro e seu governo burguês
Entendemos que Maduro é um governo burguês. O chavismo, corrente da qual se reivindica e apela sempre que está dificuldade, não representa a classe trabalhadora e não tem um projeto socialista. É uma corrente ideologicamente burguesa dirigida por uma burocracia estatal e pelas forças armadas. Essa sua classe social, chamada de boliburguesia, tem muitos negócios com o Estado e controla diversas empresas públicas.
E há uma crise econômica e social importante no país.
Quem está lendo esse texto certamente conhece algum imigrante venezuelano/venezuelana, normalmente em emprego precarizado, que mora nas periferias e sem acesso a serviços públicos. De acordo com o ACNUR (órgão da ONU) são quase 8 milhões de venezuelanos, maioria por questões econômicas, que deixaram o país. Estados Unidos, Colômbia e Brasil são os principais destinos.
Com mais de 50% da população na pobreza, salário-mínimo próximo de 100 dólares (algo como R$ 530), com redução do funcionalismo público que repercute no desemprego e na prestação de serviço público, com uma diferença em torno de 35 vezes entre os 10% mais pobres e os 10% mais ricos, com a atual inflação em 160% ao ano, a Venezuela tem uma das maiores desigualdades sociais do mundo.
Esse quadro econômico associado ao “socialismo do século XXI” (propagado e que enganou o povo venezuelano) se mostraram incapazes de resolver os problemas sociais e se tornaram uma arma da extrema-direita contra o socialismo. Esse tipo de governo não é socialista, pois o poder não está sob controle da classe trabalhadora, a propriedade privada (reconhecida pela constituição) é o eixo do modelo econômico, o Estado está sob controle de uma burocracia partidária burguesa, os sindicatos estão sob controle da burocracia sindical de direita ou do chavismo, entre outros vários problemas.
Diferentemente do que alguns setores ditos de esquerda institucional acreditam, Maduro não se opõe a burguesia venezuelana e nem é socialista. Nunca ameaçou os bancos, paga fielmente a dívida pública, já não pouco distribui a riqueza gerada com o petróleo, nunca atacou a propriedade privada e nem as instituições do Estado burguês.
Zero confiança nos Estados Unidos
O imperialismo estadunidense, canalha como a oposição burguesa venezuelana, fala em defesa da democracia e do povo da Venezuela, mas sabemos muito bem que o objetivo é tomar conta do país e do petróleo.
A história dos Estados Unidos é de apoio a todo tipo de ditaduras, tem uma longa e sangrenta história de golpes na América Latina e outras partes do mundo. Ninguém pode confiar e se agora estão com suas armas contra o governo de Maduro, logo depois, a mira vai ser o povo. Eles esperam obter melhor acesso às reservas de petróleo da Venezuela, uma das maiores do mundo, e colocar um novo governo totalmente aliado para seguir aplicando o neoliberalismo e mantendo a dominação dos Estados Unidos na Venezuela e na América Latina. Uma demonstração de como agem contra a Venezuela é o tratamento dado aos imigrantes venezuelanos com deportações e até prisão de crianças em centros de detenção próximos à fronteira com o México.
A crítica que fazemos a Maduro e seu governo não é nenhum apoio a oposição burguesa e muito menos ao imperialismo. Todos esses problemas atingem diretamente o povo venezuelano e por isso apoiamos todas as suas lutas e somos contra qualquer regime opressor. Entendemos que a luta de parte do povo que está contra o governo de Maduro é contra todo e qualquer tipo de ingerência imperialista na Venezuela. E os socialistas de todo o mundo devem apoiar essas lutas e rejeitar incondicionalmente a intervenção imperialista.
As sanções e bloqueios econômicos que os Estados Unidos impõem contra a Venezuela (também contra Cuba, etc.) só agravam as condições de vida do povo venezuelano. A extrema-direita e os EUA dizem que é para pressionar governos, na verdade é para desabastecer os mercados de produtos básicos, ou seja, atacam o povo para que fique contra o governo e enquanto isso os ricos e o próprio governo continuam com o bom e com o melhor. A defesa da classe trabalhadora venezuelana também passa por apoiar a luta contra qualquer bloqueio econômico que os Estados Unidos impõem.
Maduro Anti-imperialista?
É evidente que o imperialismo (sobretudo o estadunidense que durante o século XX exerceu forte controle sobre o país e sua renda petrolífera) tem interesses que entram em conflito com um setor da burguesia venezuelana ligada ao petróleo, dos militares (que controlam parte importante da economia petrolífera) e da poderosa burocracia estatal. É nessa esfera que se localizam os conflitos e forçam Maduro e seus apoiadores a aumentarem o tom contra os governos estadunidenses.
Mesmo nos seus parciais enfrentamentos no plano do discurso da política, o governo Maduro não pode ser identificado como anti-imperialista. Também percebemos que a intensidade de seu Maduro varia muito conforme a postura de cada governo. Com Trump, que foi muito mais agressivo e aplicou medidas de sanção mais duras, ocorreram mais choques. Com Biden, por várias razões geopolíticas, houve reaproximação e a relação foi mais “amena”.
As relações econômicas são parâmetros importantes para demonstrar que o governo venezuelano não vai romper com os Estados Unidos. Por exemplo, no ano de 2023 a Venezuela se tornou o 6º maior fornecedor de petróleo para os estadunidenses.
As novas sanções dos Estados Unidos, mesmo com as conturbadas eleições, foram parciais e permitiram, por exemplo, que a Chevron continue com as operações com a PDVSA (estatal petrolífera venezuelana) para extração de óleo bruto. Em relação ao imperialismo europeu os níveis de enfrentamento de Maduro são bem menores, com conflitos localizados.
Outro elemento importante para caracterizar essa relação com o imperialismo é que o governo Maduro nunca mobilizou a classe trabalhadora venezuelana para se contrapor aos interesses imperialistas nem no país e nem no continente, pelo contrário, sempre buscou formas de negociações e aproximações.
A defesa da soberania nacional da Venezuela, assim como a luta contra a direita e a extrema-direita não passa por Maduro, nem pelas FFAA, nem pelo chavismo e sim pela classe trabalhadora organizada e independente do Estado burguês venezuelano, dirigido pelo chavismo que tem como sua coluna vertebral, o Exército, e na perspectiva de uma revolução socialista.
Não é um regime político-democrático
Como qualquer regime político burguês, o de Maduro procura tolir, inibir e reprimir qualquer organização política independente dos trabalhadores. Hugo Chávez era um governo com mais inserção e apoio popular, o que permitia que, em relação aos setores de esquerda, pudesse usar o método de aproximação e cooptação política, muitas vezes com cargos no aparato estatal e até mesmo no PSUV (Partido Socialista Unificado, fundado por Chávez). O controle via cooptação, sobre os movimentos sindical e popular, era outro aspecto importante do modo de Chávez agir. Assim, minava qualquer possibilidade de surgir uma oposição de esquerda no país.
Maduro é um governo muito mais frágil em termos de apoio popular, o controle sobre a oposição precisa ser mais opressor e mais forte. O nível de repressão é maior e vai restringindo até mesma as liberdades democráticas mínimas. O PVC (Partido Comunista da Venezuela), durante muito tempo, foi parte da base de sustentação do chavismo, mas bastou passar às críticas ao governo para sofrer forte perseguição, com prisões de dirigentes, ameaças por parte de bandos milicianos ligados ao governo e até a Suprema Corte intervindo na direção do partido e nomeando outra, ligado ao governo e ao PSUV.
Outras agrupações políticas de esquerda (algumas trotskistas) também foram impedidas de participarem do processo eleitoral, uma medida de Maduro para inviabilizar esses setores socialistas de apresentar propostas de ruptura com o capital e contra os dois principais candidatos que defendem propostas burguesas. Parte das manobras eleitorais está a proibição dos milhões de venezuelanos refugiados (e exilados) que não tiveram direito de votar, seja pelo fechamento das fronteiras ou pela falta de urnas no exterior.
A criminalização das lutas é outra prática do governo Maduro. Nas lutas e reivindicações do funcionalismo público em fevereiro desse ano, deu como resposta a prisão de dirigentes e uma forte campanha contra o movimento, acusando-o de sabotagem contra o país. Vários dirigentes sindicais continuam detidos acusados de terrorismo contra o Estado, ativistas dos Direitos Humanos e militantes de partidos de oposição, todos presos em ordem judicial.
Nesse sentido, uma das batalhas mais importantes que se coloca hoje é a luta pelas liberdades democráticas para a classe trabalhadora, como medidas como a legalidade para os partidos da esquerda socialistas, o fim das perseguições e da judicialização contra os ativistas.
Por uma saída operária-popular
Com Maduro os problemas sociais, políticos e econômicos só vão se agravando e a extrema-direita irá pior ainda mais. São dois setores burgueses. A única saída é os “de baixo” se organizarem, construírem suas formas de organização para derrotar qualquer tipo de inimigo e de setores que aumentam a exploração, a repressão e pioram as condições de vida do povo. Temos ciência das dificuldades de isso se concretizar porquê a classe trabalhadora não se vê fortalecida e organizada para essa tarefa, mas, mesmo com os obstáculos não podemos deixar de colocar essa questão.
Uma saída operária-popular também deve enfrentar o imperialismo, estatizar os bancos e as empresas, não pagar dívida pública, colocar toda a riqueza serviços das necessidades da população e com a PDVSA sob controle da classe trabalhadora. Também deve ser garantida a universalização da saúde e educação públicas para todos.
São medidas fundamentais para melhorar as condições de vida do povo, inclusive garantindo a reintegração dos milhões de venezuelanos que perambulam por outros países, com emprego, educação e saúde.
É para isso que a esquerda socialista venezuelana, inclusive aqueles que se distanciaram do PSUV, deve insistir no desenvolvimento de um movimento de massas e de uma nova organização de esquerda, independente do Estado e que possa lutar por uma estratégia revolucionária da classe trabalhadora.
Isso não será alcançado apoiando o autoritarismo de Maduro ou o chavismo que em última instância defende uma conciliação de classes com setores da burguesia e até com o imperialismo.