Oficialmente o dia 13 de maio é o dia da abolição da escravidão no Brasil. Assim também registram os livros de história mais interessados em esconder o genocídio de milhões de negros e negras; esconder a história de luta do povo negro e esconder a verdade sobre a escravidão e sua “falsa abolição”, patrocinadas pelo Coroa brasileira.
A instituição da escravidão era muito forte no Brasil. Segundo Alencastro, para cá vieram cerca de 46% de africanos submetidos à escravidão no continente Americano. E não eram somente os grandes proprietários de terra os donos de pessoas escravizadas. Era comum também que pequenos comerciantes, padres e demais moradores fossem proprietários de uma ou duas pessoas escravizadas. Isso significava que a escravidão representava um forte poder econômico e também determinava todas as relações sociais da sociedade. Não por acaso, era constante a ideia de que o fim da escravidão significaria a ruína do país.
A dita lei da abolição e história não contada
A chamada “Lei Áurea” (Lei 3353 de 1888) foi um ato do Estado brasileiro “colocando fim a legalidade” de um regime escravista de mais de 350 anos, já completamente em crise e nada lucrativo para a nascente burguesia agrária brasileira.
Obviamente que nem precisamos nos alongar para demonstrar que, mesmo com a edição da lei, a escravidão de negros e negras, em alguma medida, continuou em várias regiões do país. Isso se deu com a continuação da violência, com o controle dos escravistas, com o fato de os escravizados, em alguns lugares, preferirem continuar nas fazendas por não ter para onde ir. Como denuncia Abdias do Nascimento, após a “Lei Áurea”, mais de 2 milhões de negras e negros foram atirados às ruas, sem terra para plantar, sem casa e sem qualquer indenização por anos de trabalho forçado.
Quando da aprovação dessa lei, a escravidão já estava em desagregação por uma combinação de elementos internos e externos:
Internamente, podemos citar o enfraquecimento econômico do tráfico desde a década de 1850; as revoltas escravas e a proliferação de quilombos; o aumento da influência de ideias abolicionistas e o movimento a favor da reforma agrária (abolicionistas, como André Rebouças, defendiam a criação de um imposto sobre fazendas improdutivas e destinação dos recursos para distribuição de terras aos negros); queda da produtividade nos engenhos e as primeiras ondas de imigrantes já incorporadas ao trabalho assalariado, dentre outros.
Externamente, destacamos o desenvolvimento do capitalismo e a necessidade de formação de mercados internos para escoamento da produção (em que o assalariamento é um elemento importante); a pressão dos principais países capitalistas, principalmente a Inglaterra, que não tinham mais interesses nos negócios com o tráfico negreiro; fortalecimento de outros polos açucareiros como nas Antilhas, todo o processo da Revolução Industrial, etc.
Dado essa crise do sistema escravista brasileiro, a “Lei Áurea” antecipou algo que “estava marcado para acontecer” – foi importante para as nascentes burguesias comercial e industrial e também para parte dos antigos latifundiários que redirecionavam seus negócios para o café – pois manteria, assim, todo esse processo sob controle.
Então, o Estado brasileiro, ainda controlado pela nobreza e financiado por mais de três séculos pelos negócios que envolviam a escravidão, instituiu a lei sob pena de perder o controle da situação e tentou construir na figura da princesa Isabel uma imagem de generosidade e redentora de negros e negras.
Controlada e pela metade, não foi abolição
Uma das fortes características do poder da burguesia brasileira é sua capacidade de se adiantar aos fatos e tomar medidas antes dos explorados. Foi assim com a abolição jurídica da escravidão na Proclamação da República (1889); a transformação do Estado brasileiro com a “Revolução de 1930”; o fim da ditadura Vargas (1945); o fim da Ditadura Militar na década de 1980. Isso, para falar dos mais importantes.
No caso da “abolição” foi ainda mais evidente essa forma de agir da burguesia brasileira. Durante todo o século XIX ocorrem muitas revoltas e rebeliões populares, na maioria das vezes, com forte participação de escravizados (Balaiada, Cabanagem, Sabinada, Confederação do Equador, dentre outras), o que colocava sempre a possibilidade de haver uma explosão escrava e as coisas saírem de controle como foi na grande Revolução Negra no Haiti.
Ainda que, somente tenha produzido alguns efeitos jurídicos (uma pessoa não ser considerada propriedade de outra), o fim da escravidão foi muito importante e é ainda mais importante procurar compreender o significado desse processo de conjunto.
A primeira questão a ser compreendida foi a ausência de medidas básicas (terras para plantar e morar, garantia de empregos assalariados, acesso à Educação, etc.), que historicamente significou a condenação à exclusão social desde os primeiros dias da abolição. A segunda questão foi o fato de ter sido um processo controlado pela classe dominante, exatamente o mesmo grupo que construiu fortunas com o trabalho escravo.
Essas duas questões, de certa forma, determinaram a situação do povo negro no país após a “abolição”. De um lado, resultaram na miséria e no afastamento de direitos sociais e de serviços públicos básicos. De outro lado, foi transformado “em inimigo interno” do Estado e da burguesia brasileira. Isso levou à construção da política que visava eliminar o povo negro fisicamente, suas tradições e cultura.
Uma abolição que precisa chegar
As políticas de exclusão e eliminação da população negra no Brasil foram articuladas e implementadas diretamente pelo Estado brasileiro e vários mecanismos, que envolveram o braço armado e o aparato ideológico, foram constituídos ao longo de nossa história para elaborar e aplicar teses que justificassem essas ações e necessitam ser destruídas. Destacamos algumas como exemplos:
– Democracia racial: sob essa tese (existente muito antes de Gilberto Freire) procura-se esconder as relações raciais, marcadas por um racismo estrutural que se estende por todas as instituições (polícia, Educação, etc.) e relações sociais no Brasil. Tenta justificar que, por exemplo, a situação social a que estão submetidos negros e negras é resultado de “falta de dedicação” e não de todo um processo histórico brasileiro;
– Política de branqueamento da população brasileira: O racismo estrutural brasileiro carrega a ideia de que os negros representam uma “raça inferior” que só pode se tornar “superior” nos casamentos inter-raciais quando houver o predomínio de brancos, isto é, uma sociedade majoritariamente negra representa degeneração. Parte dessa política de branqueamento foi o apoio à imigração de trabalhadores europeus brancos, inclusive, com o Estado brasileiro pagando passagens e concedendo terras. Assim, forma-se na sociedade uma ideologia de que brancos são superiores (com acesso à Educação, padrão de beleza, etc.) e negros inferiores. Isso impõe, muitas vezes, resignação ao negro diante de a “própria inferioridade”.
– Dissolução de costumes, práticas sociais e religiosas de descendência africana: A Igreja Católica também foi uma das donas de escravos e uma das fiadoras de escravização no Brasil. Um argumento era que negro não tinha alma e por isso não estava sob proteção divina. Com grande força religiosa (e política), durante todo o século XX, incentivava a perseguição às religiões de matriz africana, consideradas de práticas demoníacas. Atualmente, os espaços religiosos de matriz africana sofrem constantes ataques, muitos patrocinados por pastores das igrejas neopentecostais.
– O genocídio praticado por forças policiais: Nada deixa mais explícito a política estatal de exterminar a população negra do que a violência policial. Quando se refere à população negra, os números de mortos, população encarcerada, desaparecimento após abordagens policiais, condenações baseadas apenas em testemunhas policiais, etc. estão muito acima dos números referentes à população branca. Um exemplo: 65% da população carcerária são de negros ou pretos.
– As condições sociais: Resultado de décadas de exclusão social patrocinada por capitalistas, as condições sociais e econômicas da população negra são catastróficas. Alguns dados: a) entre os 10% dos brasileiros com os menores salários, 78,5% são pretos ou pardos; b) dos quase 12 milhões de desempregados, ano passado, 65% eram pretos ou pardos; c) quando estão trabalhando recebem até 31% menos que brancos; d) é a parte da população que tem menos acesso à Educação superior; e) é a maioria nas favelas e em moradias precárias.
A verdadeira Abolição necessita de uma Revolução Socialista
A condição de vida da classe trabalhadora de conjunto está péssima e a da “parte preta dessa classe”, como mostram os números acima, está ainda pior. Todos somos explorados por esse mesmo sistema social, que cria ideologias (racismo, machismo, lgbttfobia, etc.) para explorar ainda mais algumas parcelas.
Isso faz parte da lógica do capitalismo e nada o fará mudar. Não existe a menor possibilidade de acontecer uma abolição verdadeira ou uma igualdade social de fato nesse sistema, que sobrevive com o inverso disso.
Somente numa sociedade socialista, com a eliminação de exploradores e explorados, a cor da pele não será nenhum diferencial entre as pessoas e haverá as mesmas condições de vida para negros, negras, brancos, brancas, etc.
A concepção de que somente com o socialismo se resolverá essas contradições e desigualdades não significa, de modo algum, deixar de lutar por condições de sobrevivência e por políticas públicas e afirmativas de acesso à Educação, moradia, emprego, salário igual para trabalho igual, contra o racismo, etc.
Mas, uma Revolução Socialista somente é possível com a unidade e a luta do conjunto da classe trabalhadora (negro, branco, etc.).
Aqueles que reduzem à troca de partido, que está no poder, para resolver os problemas do racismo e das desigualdades são os que buscam enganar, dividir e iludir a classe trabalhadora de conjunto.
Os socialistas nunca deixam de lutar por essas transformações e alertamos sobre as crueldades e a força do capitalismo em intensificar a exploração com as retiradas de direitos e com o aumento das desigualdades, principalmente em suas crises.
Dia 20 de novembro sim, não dia 13 de maio!
Por todas as questões acima, não consideramos o dia 13 de maio como de libertação da escravidão como a história oficial. Pelo contrário, o tratamos como “Dia nacional de denúncia contra o racismo no Brasil” juntamente com o movimento negro.
Para nós, um dia a ser celebrado é o 20 de novembro, data em que Zumbi tombou na luta pela liberdade e contra a escravidão. Como diz Abdias do Nascimento “o dia da libertação a ser comemorado pelo negro ainda não chegou”, mas, “optou pelo dia 20 de novembro, que é a data da morte de Zumbi”.
O 20 de novembro, além da luta de Zumbi contra a escravidão e pela liberdade, também é uma alternativa à história oficial construída para retirar do povo negro o protagonismo dessa luta no Brasil. É importante ainda e destacamos que essa luta não se reduz a uma data de reivindicações da população negra trabalhadora e contra o racismo deve estar incorporada na nossa atuação cotidiana.
E quanto ao nosso modo de falar?
A linguagem, como um elemento de reprodução das ideias da classe dominante, também precisa ser combatida. E o nosso cotidiano está recheado de exemplos de palavras com significados que buscam desqualificar ou degenerar a parcela negra da classe trabalhadora.
No imaginário popular, em que as ideias da classe dominante se naturalizam, existem muitas: “a coisa está preta” como sinônimo de que está ruim; denegrir (de negro) para desqualificar a imagem ou a honra; “coisa de preto” relativo a mal feito, etc. Enfim, são muitas as palavras usadas no nosso cotidiano que foram introduzidas como expressão do racismo existente na nossa sociedade.
Nesse sentido, há também as palavras escravo/escrava ainda mais complicadas. São usadas para designar propriedade como se a condição de escravidão fosse algo natural, própria do ser das pessoas. Só que ninguém deve nascer escravo/a e muito menos escolhe ser escravo. Sob a forma de conquista da guerra (modo de produção escravo) ou sob a forma de negócios capitalistas (atividade mercantil controlada por grandes multinacionais) a escravização era imposta sobre as pessoas a sangue e a fogo.
Por isso, é muito importante também substituirmos palavras e termos. Nesse último exemplo, utilizarmos pessoas escravizadas para demonstrar de forma mais fiel a realidade, ou seja, pessoas não nasceram escravas, mas, foram escravizadas por um sistema social que sempre visou o lucro ao transformar gente em mercadoria.
Para muitos a questão da linguagem parece ser algo menos importante, mas não é. Pelo contrário. Aceitar essas palavras e termos, além do aspecto de associar a escravidão à condição do ser, há também a naturalização de relações escravistas ainda bastante vigentes em nossa sociedade, de preconceitos raciais, do racismo estrutural brasileiro e a descaracterização do “escravizador” (o rico, o burguês, o empresário, etc.), ou seja, todos os que lucram com as atividades de escravização de pessoas e como agente ativo do processo de escravização.
É muito importante incorporar na nossa ação direta e cotidiana a resistência aos padrões linguísticos impostos pela classe dominante, pois dizem muito sobre dominação.