Rafael Albuquerque
No dia 24 de fevereiro, a Ucrânia foi palco de uma tragédia que pode ter sido uma novidade histórica, um novo momento nas relações internacionais. Dois importantes elementos da natureza foram os meios para a mensagem da novidade: o ar e a terra. As aeronaves russas iam limpando o caminho para os tanques de guerra. Esta mensagem tem gosto de morte, destruição e foi dada pela Rússia num triplo ataque pelo norte, leste e sul da Ucrânia.
Mais uma guerra se iniciou, dentre tantas já travadas e em andamento que podem ser listadas nos anos que se sucederam a Segunda Guerra Mundial. Mas por que esta guerra parece ser uma novidade histórica?
Porque ela parece simbolizar uma mudança importante na configuração das guerras que existem no mundo. Elas deixariam de ser uma guerra mais ou menos indireta entre os Estados potências, na suicida competição no mercado global. O dia 24 de fevereiro parece simbolizar a passagem para um enfrentamento direto entre tais potências, entre tais Estados. O mundo se mobilizará para a guerra, se esta tendência se confirmar.
No discurso de Putin no dia 24, pouco antes do triplo ataque à Ucrânia, ele deixa claro que tem noção de que um novo momento começou com esta guerra. Portanto, para justificar um fato histórico tão importante, ele precisou fundamentar o anúncio da sua decisão de guerra recorrendo a elementos históricos da relação entre a Rússia e o mundo.
Citando, para isso, a posição da Rússia nas relações internacionais – a cadeia imperialista mundial – desde os tempos da Rússia Soviética, passando pelas alterações destas relações internacionais após a Segunda Guerra Mundial e após a dissolução da União Soviética em 1991. Sua retrospectiva histórica caminha para a conclusão de que os acordos feitos nestes episódios não têm mais validade. Primeiro, porque os Estados Unidos e seus aliados, ao longo desses 30 anos, tem descumprido sistematicamente os acordos, avançando a infraestrutura da OTAN em direção à fronteira com a Rússia, o que significaria uma preparação militar; e, segundo, porque estas divisões do mundo feitas na metade e no final do século XX não corresponderiam mais à realidade concreta do século XXI.
Putin deixa claro que o avanço da OTAN (uma ferramenta da política estrangeira dos Estados Unidos) em direção às bordas da Rússia significa, para ele, uma ameaça crescente nestes últimos trinta anos à soberania Russa. E ele decide, portanto, se preparar e organizar a execução do primeiro ataque, no tripé norte, leste e sul. Ele tem que mostrar que aprendeu com a história da Segunda Guerra Mundial, considerando um erro a URSS ter evitado provocar o potencial agressor até o último momento. Quando teve que agir, era muito tarde, porque a Rússia não estava preparada quando Hitler a atacou em 22 de junho de 1941, sem declarar guerra.
Putin diz que eles não podem cometer este erro novamente e por isso se adiantou ao inimigo e no dia 24 de fevereiro de 2022 atacou a Ucrânia como início do grande combate que se projeta no futuro. Não só contra a Ucrânia e outros países da região, mas contra os Estados Unidos. Assim, para ele, esta foi a única coisa que poderia ter sido feita, diante deste desenrolar histórico das relações internacionais desde a década de 1990. À Rússia não teria sido deixada nenhuma outra alternativa para defender a sua existência.
Ele diz não exagerar. A fundamentação da entrada na guerra para Putin se trata de uma questão de vida ou morte, é uma questão do futuro histórico da Rússia como nação. As condições históricas que levariam à Rússia a começar esta guerra não são uma simples ameaça aos interesses do país, mas seriam uma ameaça precisamente à existência da Rússia enquanto Estado e à sua soberania.
Putin, então, acredita ter incorporado a missão histórica de, como tomador de decisão política da Rússia, por um lado, salvar o Estado Russo e, por outro lado, redefinir os “acordos internacionais” para a realidade concreta do século XXI, de 2022. Como esta missão histórica só pode ser cumprida através da guerra entre os Estados imperialistas, ele reconhece o potencial de seus adversários, mas alerta que a Rússia (desde os tempos soviéticos) é um dos mais poderosos Estados com energia nuclear e tem vantagem em diversas armas de ponta. Ele ameaça: quem ficar no caminho do Estado Russo deve ficar sabendo que o Estado vai responder imediatamente. E as consequências serão tais, que nunca foram vistas antes na história. Colocado desta maneira, como se trata de uma questão de vida ou morte, ele diz que não importa como os eventos se desdobrem, o Estado Russo está preparado.
Este discurso foi exibido na televisão na Rússia, no dia 24 de fevereiro.
As principais potências da OTAN, entendendo na prática a mensagem da novidade histórica através de Putin, mudaram rapidamente o discurso e começam a realizar a sua maneira de mobilização para o que chamam de Guerra Mundial (os confrontos diretos entre as potências imperialistas globais). Num primeiro momento, o discurso geral condenava a guerra e Putin, mas não propunham envolvimento direto dos Estados Unidos, da União Europeia, nem da OTAN – o enfrentamento girava em torno de sanções econômicas. Pouco depois, dinheiro é enviado, coletes, mísseis e armas são fornecidos, numa mobilização já histórica que envolve, por exemplo, dois outros Estados-potência – Estados Unidos e Alemanha.
No dia 2 de março, Joe Biden, o presidente dos Estados Unidos, discursou em Wisconsin sobre a guerra, e disse que eles estavam do lado da Ucrânia na luta contra Putin. Mudando de postura em menos de uma semana, agora algo em torno de 20 países do ocidente estão enviando milhares de armas, artilharia antitanques e antiaéreos. Entre tais países estão, além dos Estados Unidos e da Alemanha, a Suécia, Reino Unido e Holanda. Estados Unidos e outros já enviam inclusive milhares de tropas para países da Europa próximos do conflito.
É preciso, portanto, na luta contra Putin, se juntar a ele como mensageiro da desgraça e criar, de uma maneira ocidental, uma mentalidade de guerra na população dos seus países, como complemento ideológico da necessidade econômica e política de lutar contra a Rússia. Para tanto, é iniciada uma propaganda ideológica de identificação da guerra contra a Rússia como uma defesa da humanidade. Falseando os interesses econômicos e políticos de cada Estado como valores humanos universais, agora o ataque à Ucrânia significaria um ataque a toda humanidade. E é preciso ir à guerra para defende-la. A Guerra Mundial. Assim querem que o ocidente acredite.
Tais Estados precisam ir à guerra contra o Estado russo, apesar dos apelos éticos que foram inicialmente feitos à Putin (se é que podemos dizer que foram apelos éticos verdadeiros). Mas, de qualquer forma, nenhum apelo ético por si só é capaz de ir contra uma ação concreta, enraizada na história e com uma força econômica e política tão grande – de redefinir ou de manter a relação internacional entre os Estados-potência do sistema capitalista. Na verdade, a virada tão rápida na postura dos países opostos à Rússia pode simbolizar que talvez tenhamos chegado a um ponto em que o confronto direto entre estas potências não pode mais ser evitado diplomaticamente, fundamentado nos acordos internacionais anteriores.
Até agora, este novo momento histórico das guerras no mundo são uma forte tendência, mas certamente há contratendências que podem desmobilizar a guerra em andamento, deslocando estes conflitos para o futuro (talvez breve). Algumas questões importantes que podem deslocar a guerra para o futuro ou alterar a atual relação de forças entre os países são: quais os efeitos à médio e longo prazo das sanções econômicas na economia da Rússia e do mundo? Putin tem aliados para sustentar uma guerra de longo prazo? Qual será a posição da China se tiver que entrar no conflito? Até onde vai a unificação do Ocidente? E sobre o local atual do conflito: quais são as vantagens concretas do Estado Russo ao conquistar a Ucrânia nesta tensão global? Se ele tomar a Ucrânia, qual será a reação dos Estados Unidos e Alemanha e seus aliados? E se Putin não conseguir tomar a Ucrânia, os Estados ocidentais vão assinar algum acordo de paz ou vão passar para um contra-ataque?
As respostas serão dadas na realidade. Mas se chegou o momento em que as relações econômicas exigem que os Estados, como meio de tentar solucionar a crise estrutural que cada país vive, entrem em guerra para tentar adequar as relações internacionais aos seus interesses particulares, aí a tendência de que estamos entrando em um novo momento das guerras globais ganha força. Se for este o caso, nenhum representante político dos países envolvidos diretamente no conflito pode parar a guerra, porque contraditoriamente ir à guerra significa a realização e confirmação do seu respectivo Estado, garantindo os interesses nesta competição global.
Mas por que o Estado e a guerra estão conectados de tal maneira?
Na filosofia marxista, o surgimento do Estado está inerentemente relacionado com o surgimento de uma sociedade dividida em classes, uma sociedade desumana que se fundamenta na exploração do trabalho. Sociedades fundamentadas na exploração do ser humano pelo próprio ser humano. Nas sociedades antigas, passando pelo feudalismo até chegarmos ao sistema do capital (com o capitalismo e o pós-capitalismo soviético), o Estado é a forma política necessária para garantir a reprodução destas sociedades profundamente contraditórias – que necessariamente geram infinitos conflitos. Entre outras responsabilidades, o Estado tem um papel crucial em dois conflitos sociais fundamentais: contra a própria classe social subordinada (o trabalhador do seu país), mas também contra os outros Estados.
Na sociedade moderna que vivemos, a forma de produção e reprodução baseada na exploração gera o conflito e a competição pelo acúmulo de riqueza e poder. Competição na economia, na vida privada e também na política. Uma característica marcante de toda a sociedade. Sobretudo para o Estado, que é a expressão política desta sociedade desigual. Assim, no plano das relações políticas internacionais, acontece uma disputa entre os Estados pelo topo da cadeia hierárquica entre eles. Sempre.
O espírito de guerra é, portanto, permanente – uma vez que os acordos de paz só são conseguidos através da finalização da guerra e a guerra recomeça quando a realidade – que é histórica – não corresponde mais a estes acordos. Pois eles expressariam as relações de subordinação que foram impostas pelos vencedores daquele momento passado. Em paz ou em guerra, de diversas maneiras, o Estado necessariamente tem que buscar a conquista do controle geral, dominando política e militarmente uma parte crescente do mundo – construindo um império moderno. Portanto, nestes dois importantes conflitos, o Estado é uma máquina política de opressão e violência. Podemos dizer que a guerra faz parte da natureza do Estado.
Sendo assim, nenhum apelo ético, por mais nobre que seja, pode parar a guerra se estas tendências realmente se confirmarem. Um apelo ético frente a uma ação concreta desta profundidade histórica, neste sistema social desumano, é emocionante, mas bastante ineficaz para parar os cavaleiros da morte. Estes mensageiros da desgraça são apenas personificações do próprio sistema do capital. São a corporificação humana das necessidades internas de uma reprodução social desumana. O que realmente move a guerra é as necessidades internas do sistema fundamentado na exploração do trabalho. Não demorará até vermos novamente que com a tragédia e o horror – tal como a pandemia do COVID – se acumula muita, mas muita riqueza nas mãos de uma classe social.
Então o que poderia parar a Guerra Mundial?
Putin não mencionou um fato histórico muito importante da Rússia, na sua fundamentação histórica de mensageiro da desgraça: a existência dos Sovietes, instituição em que os trabalhadores se organizaram autonomamente para discutir e tentar resolver problemas sociais, econômicos e políticos das suas vidas. É um fato histórico tão importante que a experiência iniciada em 1917 carregou seu nome de 1922 (com o estabelecimento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), até a dissolução em 1991. E carregaram seu nome apesar de o Partido ter sufocado esta forma de organização autônoma dos trabalhadores ainda por volta de 1920/1921, traindo os princípios de igualdade e autonomia e concentrando o poder econômico-político daquela experiência, se tornando o Partido-Estado “soviético” que ficou marcado na história mundial e entendido como “sinônimo de socialismo”.
Desta experiência de auto-organização, podemos tirar importantes reflexões. Nossa chance de impedir esta tragédia da guerra gira em torno de impossibilitar a sua realização material. Os trabalhadores e a população em geral dos países envolvidos tomarem controle das relações de produção e distribuição de todo o arsenal necessário para realizar a guerra. De armas, comidas, equipamentos tecnológicos, a transportes. Alimentado pelo controle destes setores da produção e distribuição, aí sim o apelo ético terá um papel mais importante e podemos levar adiante um projeto de destruição das armas. Nenhum discurso pró-guerra e morte é também suficiente por si só: sem os meios materiais para tal, é impossível se realizar a guerra. Os representantes políticos dos Estados certamente não irão lá em pessoa. E o discurso vazio de base material flutua aos ventos.
Se este for realmente o início de um novo momento histórico no que se refere ao patamar das guerras globais, que atinge o status de Guerra Mundial, isto carrega consigo uma outra mensagem importante. É mais um sinal histórico catastrófico que coloca na mesa a tarefa histórica de reestruturar radicalmente nossas instituições sociais. Confirmada esta tendência, a humanidade tem alguns anos, talvez algumas décadas, para aprender a administrar e organizar a sociedade através de novos princípios.
O princípio da igualdade e da autonomia. Da liberdade e da autorrealização enquanto ser humano. De trabalho livre e felicidade. Criando uma sociedade que sua própria reprodução seja antagonicamente oposta à guerra, que as armas sejam não só abaixadas, mas destruídas. Que não precisaríamos de um Estado para garantir a reprodução da sociedade. E que a paz não leve à guerra e a guerra leve a paz, num círculo vicioso até o último final. Mudar de tal maneira nossa forma de ser, nossa forma de viver em sociedade, não é nada menos do que uma revolução social.
Caso novas instituições sociais não sejam criadas, vamos assistir perplexos a destruição da humanidade. Mas até que isso aconteça, temos a chance de mudar nosso futuro. Até o incerto grande final, não há última despedida. Ainda podemos recomeçar.
Rafael Albuquerque
Mestre em Serviço Social pela UFAL
Galway, 02/03/2022
Referências:
– Brinton. Os bolcheviques e o controle operário.
– Engels. A origem da família, da propriedade privada e do Estado.
– Marx. Guerra Civil na França
____. 18 de Brumário.
____. Glosas Críticas.
– Mészáros. Para Além do Capital.
_______. Prefácio ao Para Além do Leviatã.
– Discurso de Putin em 24 de fevereiro, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1qS6J-WbTD8
– https://www.nytimes.com/2022/03/02/world/europe/nato-weapons-ukraine-russia.html
– https://www.theguardian.com/world/2022/feb/28/weapons-from-the-west-vital-if-ukraine-is-to-halt-russian-advance
– https://www.dw.com/en/western-arms-supplies-for-ukraine-how-are-they-getting-there/a-60959864