Iago de Macedo Mendes*
Rafael Albuquerque**
A democracia brasileira, esta frágil democracia formal, foi gravemente atacada no dia 8 de janeiro de 2023. A extrema-direita no Brasil há anos vem se fortalecendo diante dos olhos de todo mundo. Em 2018, Bolsonaro, por enquanto o seu maior representante político, chegou a se tornar presidente do país. Por quatro anos, o Brasil e o mundo testemunharam o avanço do neoliberalismo em sua forma mais reacionária, canalizando os sentimentos e as ações conservadoras de quase metade dos eleitores brasileiros. Mas a intensificação da exploração social e da opressão inflamou, por outro lado, o sentimento de indignação e a necessidade de resistência e de avanço dos valores democráticos. E o representante político destes últimos continuou cristalizado em Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores.
A eleição presidencial de 2022 foi, assim, a eleição mais disputada da história do Brasil. O engajamento populacional nunca antes visto expressa, na realidade, um intenso conflito entre as classes que compõem a sociedade civil brasileira. Expressando isso, quando analisamos a questão da renda, todas as pesquisas de opinião de voto desenhavam um quadro em que os apoiadores de Lula eram majoritariamente cidadãos de menor potencial aquisitivo, enquanto os apoiadores de Bolsonaro eram, em sua maioria, integrantes da classe média e alta classe média.
Outras mediações também são importantes para a definição dos dois grupos políticos: a imensa maioria dos negros e pardos, das mulheres, dos trabalhadores do setor cultural e artístico e de proteção do meio ambiente defenderam o atual presidente Lula. De outro lado, os indivíduos socializados na religião evangélica pentecostal e membros das forças armadas e policiais, predominantemente, se engajaram pela eleição de Jair Bolsonaro. A parcela ligada ao capital mais tradicional (grandes bancos, grandes indústrias e empresas consolidadas há décadas no mercado) apoiou no primeiro turno a chamada “terceira via”, personificada na candidatura de Simone Tebet, e voltaram-se para a campanha de Lula no segundo turno. E, do lado oposto, tínhamos um setor do capital ultraliberal e reacionário que enriqueceu assombrosamente durante o governo Bolsonaro (madeireiros, empresários agrícolas na fronteira da lei, empresários do garimpo ilegal, a indústria das armas e outros empresários próximos à sua ideologia).
O resultado da eleição mais disputada do país foi a eleição do candidato do Partido dos Trabalhadores, Luís Inácio Lula da Silva. Mesmo sem um programa de governo claro, Lula trazia as bandeiras históricas que foram praticadas durante os seus dois governos anteriores: a diminuição da pobreza, a erradicação da fome, a extinção do desmatamento na Amazônia, etc. Além disso, Lula foi chancelado pela grande opinião pública como o indivíduo político capaz de realizar a grande pacificação nacional, o restaurador da democracia brasileira.
Porém, por debaixo do silêncio estratégico de Jair Bolsonaro, as forças reacionárias da sociedade civil não se curvaram à vitória do Partido dos Trabalhadores nas urnas. Educados pela campanha liderada pelo ex-presidente, vários de seus apoiadores começaram a acampar em frente aos quarteis militares acusando as eleições de terem sido fraudadas e pedindo intervenção militar no Brasil. Financiados por muitos empresários, os rebeldes ficaram famosos nas redes sociais pela fartura de seus acampamentos, que contavam com café da manhã, almoço, jantar e até churrasco em momentos mais festivos.
O que esses empresários e os membros dos acampamentos almejavam era que o candidato derrotado continuasse no poder, dando prosseguimento a sua política econômica, social e cultural, sua versão do neoliberalismo, que tanto os beneficiou nesses últimos anos. Esses agrupamentos permaneceram instalados na frente dos quarteis mesmo após a posse do novo presidente, e passaram a servir de central de planejamento de um possível golpe de Estado ou atentado à democracia formal.
Em 8 de Janeiro de 2023, a extrema-direita fez o seu ensaio geral de golpe através do ataque direto à sede dos Três Poderes da república brasileira. E, para isso, contaram com a complacência das instituições e agentes públicos. Por exemplo, tiveram ajuda direta e/ou indireta do Governo e da polícia militar do Distrito Federal – como o governador do DF Ibaneis Rocha (MDB), como Anderson Torres que era Secretário de Segurança do DF (que foi Ministro da Justiça no Governo Bolsonaro) e como o Coronel Fábio Augusto, que chefiava a PM durante os ataques.
Os policiais da PMDF escoltaram os golpistas em direção ao ataque às Sedes dos Três Poderes. Os manifestantes adentraram nos prédios públicos mais importantes do território nacional, destruíram obras de arte e o patrimônio arquitetônico. Ficou claro, para todos que quiseram ver, que a atitude do Estado e das forças policiais contra as ações da extrema-direita foi predominantemente de vista grossa e complacência. Não só no dia 8 de janeiro, mas antes, nos acampamentos em frente aos quarteis; ou nas declarações públicas e elaborações teóricas incentivando ações golpistas, não raramente ações armadas. As cenas de “repressão” das forças do Estado aos “manifestantes” do dia 8 de janeiro de 2023 são patéticas, trágicas e cômicas, se tornando mais um mote para novos memes brasileiros.
Essa ajuda da polícia militar (e provavelmente também do exército no Distrito Federal) é um agravante importantíssimo na análise da particularidade desse evento. Pois, se comparamos esse ataque às instituições políticas do Brasil com a invasão do Capitólio americano em 6 de janeiro de 2021, o caso brasileiro se mostra muito mais preocupante, já que, na insurreição americana, as instituições de segurança agiram conforme o previsto e reprimiram o movimento golpista. No caso brasileiro, o envolvimento da polícia joga a crise política nacional em outro patamar. Agora, não é fácil responder a pergunta “quem é responsável por assegurar a nação?”.
Bolsonaro, como representante da fração da burguesia brasileira ligada à burguesia reacionária dos EUA (que apoiam Trump), sempre teve um discurso coerente com as ações realizadas no dia 08 de janeiro, em Brasília. Há inúmeros registros de episódios em que Jair Bolsonaro deixa clara sua inclinação para a guerra civil, a tortura de opositores de esquerda e comunistas (chegando a elogiar torturadores) e o armamento das pessoas de direita. Nos últimos meses, inflamou constantemente a criação da sua versão da invasão do Capitólio nos EUA – e agora tenta se desvincular do recente evento golpista. Mas é impossível. Nesse marcante dia da história nacional, fica escancarada a natureza golpista da perspectiva política de Bolsonaro e dos grupos sociais por ele representados. Além disso, fica escancarada a natureza do próprio Estado enquanto organização do poder político nacional.
Para enfrentar este ensaio geral de golpe da extrema-direita, as forças armadas do Estado se dividiram e não agiram de maneira coesa, expressando o conflito de interesses que existe entre as frações da burguesia e seus representantes políticos. No entanto, a atitude do Estado frente ao movimento dos trabalhadores e oprimidos é radicalmente oposta – de muita coesão e organização. Greve de trabalhadores que lutam por direitos são reprimidas violentamente, com frequência – independente de presidente de esquerda ou de direita. Mas greves atrapalham a acumulação de riqueza, a acumulação de capital. Enquanto que uma tentativa de golpe de Estado da extrema-direita favorece (ou pelo menos promete abertamente) uma rápida acumulação da riqueza, a manutenção das desigualdades sociais.
Há momentos históricos em que a natureza do Estado fica bastante evidente. Este é um dos momentos que, na história do Brasil, isso fica escancarado pelo próprio desenvolvimento das contradições sociais. Assim, ganha força a perspectiva de Marx da natureza do Estado como o “poder nacional do capital sobre o trabalho”, a “força pública organizada para a escravização social” e uma “máquina de despotismo de classe”. Várias simples greves de trabalhadores foram reprimidas com muito mais eficácia, velocidade e violência do que os longos meses de preparação golpista da extrema-direita, numa cidade como Brasília, que é fisicamente projetada para reprimir manifestações.
O grande opositor institucional de Bolsonaro, Lula, reagindo aos eventos golpistas, afirmou oportunamente que garimpeiros, madeireiros e empresários do agronegócio que atuam na ilegalidade estão envolvidos nesse atentado. A guerra entre esses grupos políticos e sociais se intensificam cada vez mais, pois algumas das políticas anunciadas por Lula, como a defesa dos povos originários, o desarmamento e a diminuição do desmatamento, vão de encontro aos interesses desses capitalistas específicos. Eles tentarão de todos os modos possíveis retomar a hegemonia no seio do Estado brasileiro – e vale lembrar que a modalidade institucional de golpe já foi usada recentemente no Brasil, na ocasião, para retirar Dilma Roussef do poder.
Cabe-nos refletir agora a uma questão que ronda várias mentes mundo afora: Lula e sua frente ampla serão capazes de conter essa voracidade dos bolsonaristas?
Para avaliar essa questão precisamos ter em mente a fragilidade dessa frente ampla, formada por frações do capital que antes aderiram ao golpe e ao bolsonarismo e os grupos sociais mais ligados ao PT. Essa parte capitalista da frente só preferiu a opção Lula, pois ao longo de seu governo, Jair Bolsonaro se mostrou cada vez mais como um político incapaz de controlar os conflitos sociais que estouravam em todas as partes do país. Ficou cada vez mais claro que ele tinha um partido próprio e que só recuava em suas pautas de extrema-direita quando o conflito com o grande capital estava a ponto de oloca-lo numa situação de impeachment.
Isso aconteceu, por exemplo, logo após as manifestações de 7 de setembro de 2021, quando pediu a Michel Temer para escrever uma “declaração a nação”. Ainda, essa característica pouco conciliadora de Bolsonaro se traduziu em dificuldades em realizar grandes reformas neoliberais e privatizações. Foi por esse motivo que esse setor mais tradicional do capital decidiu não apoiar mais seu governo e procurar uma “terceira via” e, no final, apoiar em sua maioria a candidatura de Lula.
Lula chega ao governo, portanto, não como um presidente que governa com um programa condizente com a sua base eleitoral, mas como um político que precisa conciliar as tensões entre capital e trabalho, o que se mostra cada vez mais complicado nessa década. Portanto, esses setores do capital que aceitaram Lula com reservas, e que o pressionam sem cessar para que ele governe para eles, só vão tolerá-lo caso ele faça prevalecer seus interesses sem criar profundas perturbações no tecido social.
Desse modo, como dissemos no início do texto, Lula assume a presidência numa situação complicadíssima. Pressionado por sua base para que implante políticas sociais para que o Partido dos Trabalhadores continue sendo o partido preferido da parcela mais pobre do eleitorado. Pressionado por integrantes de sua frente ampla para garantir o lucro dos setores mais tradicionais do capital nacional e, por último, pressionado pelas forças reacionárias da sociedade que anseiam retomar a hegemonia política de qualquer forma. Qualquer evento social de maior impacto pode romper a precária arrumação institucional de Lula e colocar o Estado brasileiro novamente numa aberta orientação radicalmente contra os trabalhadores, contra a natureza e contra as chamadas minorias.
Os trabalhadores brasileiros, por sua vez, precisam se envolver diretamente nos embates sociais, não deixando a responsabilidade e as ações apenas nas mãos das forças do Estado, que está profundamente comprometido com processos golpistas, seja o de 1964, o de 2016 e a tentativa de 2023. É preciso ganhar experiência de luta nesse novo contexto da luta social no Brasil, bem como aproveitar a oportunidade para colocar à prova a afirmação do poder social dos trabalhadores enquanto verdadeiros produtores da riqueza nacional.
De forma cada vez mais urgente, é preciso que os trabalhadores criem organizações independentes do Estado e dos empresários que estejam preocupadas em analisar e agir sobre os problemas concretos dos próprios trabalhadores. É preciso urgentemente criarmos novas formas institucionais que estejam de fato voltadas a analisar e resolver os problemas sociais do povo (trabalhadores) – já que o Estado burguês constantemente escancara que se preocupa de cuidar dos problemas da classe dominante, da burguesia que domina a todos, a elite da sociedade que concentra a riqueza produzida pelos trabalhadores. E cuidar dos problemas da classe dominante é degradar constantemente as condições de vida dos trabalhadores e reprimir aqueles que tentam se revoltar contra.
Assim, o que podemos esperar para o futuro próximo no Brasil é mais, muito mais luta social, não menos. Fica também escancarado que a vitória de Lula da Silva (Partido dos Trabalhadores) não significa, em absoluto, a vitória sobre a extrema-direita, expressa hoje em dia no bolsonarismo. Na verdade, a posição de Lula e do Partido dos Trabalhadores é uma verdadeira sinuca de bico.
Por um lado, se apenas contar com as forças “democráticas” institucionais, na sua ilusão de “Frente Amplíssima” para conter o bolsonarismo, corre grande risco de não conseguir governar ou até mesmo sofrer algum dos tipos de golpe que a burguesia reacionária tem na manga. Por outro lado, se convoca as massas de trabalhadores para uma mobilização contra a extrema-direita, ele corre o risco de ser atravessado pelas necessidades represadas do povo há muito que são colocadas debaixo do tapete. Além disso, numa possível radicalização das pautas da esquerda, ele pode ficar para trás, deixando de ser o representante nacional da esquerda e dos trabalhadores.
A defesa da verdadeira democracia, ou seja, um poder do povo, tem de ser feita através destas novas formas de organizações e instituições sociais criadas pelos próprios trabalhadores para resolver seus próprios problemas sociais. Eles produzem a riqueza e devem produzir, de acordo com esse seu poder, a estrutura política responsável por organizar a sociedade através do exercício do poder pelos próprios trabalhadores, coletivamente. Enquanto não criarmos estes novos órgãos sociais, há uma forte tendência de intensificação de um duplo processo: a) destruição dos resquícios democráticos da estrutura política burguesa brasileira e b) avanço da extrema-direita e sua postura bélica e golpista, intensificando a exploração social e a opressão.
Neste sentido, em 8 de janeiro de 2023, mais uma vez soa o sinal de que o futuro do Brasil e do mundo está entre a barbárie e o socialismo.
* Iago de Macedo Mendes é doutorando
em direito na Universidade Paris-Nanterre
iagomacedo@gmail.com
** Rafael Albuquerque é mestre em Serviço Social pela UFAL
e professor do Departamento de Serviço Social da UFS.
rafajma@gmail.com