Duas dificuldades
A resposta a essa questão enfrenta dois problemas. O primeiro se relaciona ao fato de que o desenvolvimento da humanidade, com frequência, cria possibilidades novas, antes inexistentes, que fazem com que a imaginação do que seria o seu futuro seja, quase sempre, uma tarefa inútil. Marx e Engels recusaram todo futurologismo, isto é, dizer como seria uma sociedade em que não houvesse a exploração do homem pelo homem. Essa a primeira dificuldade: não é possível afirmar com precisão aquilo que os seres humanos poderão fazer no futuro.
A segunda dificuldade diz respeito ao próprio socialismo.
Escravismo, feudalismo e capitalismo, nós sabemos o que são. São as formas de organização social que se baseiam nas formas típicas do trabalho explorado (do trabalho alienado). O trabalho escravo é a base do modo de produção escravista, o trabalho do servo é o alicerce do feudalismo e, o trabalho proletário, do capitalismo[1].
Comunismo – ainda que nunca o tenhamos conhecido – também tem uma definição clara, precisa: é o modo de produção que tem por base o trabalho associado (ou seja, não alienado, não explorado). Por não ter por base a exploração do homem pelo homem, o comunismo será uma forma de organização social sem Estado, propriedade privada, classes sociais ou família monogâmica (trataremos do comunismo no próximo Jornal Espaço Socialista).
Socialismo, contudo, é algo diferente. O socialismo é a etapa histórica de transição entre o modo de produção capitalista e o modo de produção comunista. Suas características dependerão, portanto, de onde se iniciar a transição. Em uma sociedade mais desenvolvida, as tarefas imediatas da transição serão muito diferentes das de uma sociedade mais atrasada. Dependendo do patamar do desenvolvimento das forças produtivas, a humanidade pode ter problemas, desafios e possibilidades muito diferentes para a transição do capitalismo ao comunismo.
Por isso, ao contrário do capitalismo, do feudalismo, do escravismo e do comunismo, o socialismo só pode ser definido como uma transição. Diferente do capitalismo que tem em sua base o trabalho proletário, do feudalismo que se alicerça no trabalho servil, do modo de produção escravista, que se baseia no trabalho escravo, o socialismo é a passagem do trabalho proletário ao trabalho associado, da sociedade capitalista à sociedade comunista. Não há um modo específico de trabalho (como o trabalho escravo, o proletário, etc.) que seja a base do socialismo. Nesse preciso sentido, o socialismo não é um modo de produção, mas a passagem do modo de produção capitalista ao modo de produção comunista.
Dentro de limites – portanto, sem futurologismo e sem perdermos de vista o seu caráter passageiro, transitório – é possível dar uma resposta à questão sobre o que é o socialismo.
A resposta
Marx e Engels conheceram apenas uma experiência revolucionária que deu os primeiros passos dessa transição: a Comuna de Paris, de 1871. Os trabalhadores formaram, por 73 dias, um governo próprio – e a forma dessa organização serviu para as primeiras análises sobre a transição. Nós conhecemos, no século 20, várias experiências revolucionárias (Revolução Russa, Revolução Chinesa, Guerra Civil Espanhola, etc.), que também, cada uma a seu modo, com suas diferenças, serve de exemplos para nosso estudo. Os processos revolucionários e os primeiros momentos da consolidação do novo poder fornecem indícios interessantes para respondermos a questão sobre o socialismo, já que alguns elementos estiveram sempre presentes:
1) a tomada do poder pelos trabalhadores tem sido, sempre, o resultado de uma intensa luta contra os exploradores. Nessa luta, as forças armadas, a polícia, o Estado, a burocracia e todos os instrumentos que servem para manter os trabalhadores sendo explorados pelos capitalistas começam a se dissolver, até desaparecerem quase completamente. No interior das fábricas e das fazendas, proletários e camponeses tomam o poder e começam a organizar, eles próprios, a produção. A dissolução do velho poder é causada pela pressão das massas revolucionárias, pelos embates e pela violência que é inerente a todas as revoluções.
No ano de 1917, na Rússia, o exército e a política, a burocracia estatal e o governo foram perdendo forças e sendo substituídos pela auto-organização dos trabalhadores e soldados. Eles criaram uma forma nova de organização do poder militar e político, o soviet (conselho). O soviet era muito parecido a como os trabalhadores organizaram seu autogoverno na Comuna de Paris, quase 50 anos antes.
A mais visível característica do socialismo é a destruição do velho Estado da classe dominante, a dissolução de todos os instrumentos que serviam para dominar os trabalhadores e sua substituição por uma nova forma de poder.
2) A nova forma de governo é a auto-organização dos trabalhadores. Para dar conta das tarefas de transição ao comunismo, nas experiências que conhecemos, essa nova forma sempre assumiu algumas características:
– termina a separação entre o legislativo e o executivo, típico dos governos burgueses. Agora, o mesmo corpo que toma as decisões também as leva à prática, os acertos e os erros podem ser rapidamente aproveitados ou corrigidos, conforme o caso.
– os representantes dos trabalhadores são, mesmo, “representantes”. Ou seja, são eleitos para cumprirem determinadas tarefas por um período limitado de tempo e, se não corresponderem aos que representam ou se não forem capaz de cumprir as tarefas, podem ser substituídos por um novo representante também indicado pela base – autonomamente, sem qualquer autorização ou controle de qualquer instância que seja.
– os representantes não podem ser sempre os mesmos, há rotatividade.
– o salário de um representante é o mesmo que de um trabalhador.
3) a repressão social fica a cargo dos trabalhadores em armas. Não haverá mais um exército profissional, policiais, carcereiros etc., os próprios trabalhadores, em armas, organizarão as formas que ainda forem necessárias de repressão. Sendo um governo e uma força pública armada dos trabalhadores, a repressão será contra as forças da contrarrevolução e, não, sobre os trabalhadores. Milícia, no dizer da Comuna de Paris, não mais um exército e polícia como é na ordem burguesa.
4) Um governo formado por representantes dos trabalhadores (que podem ser removidos a qualquer momento pela base, lembremos), uma milícia composta pelos trabalhadores em armas são iniciativas que se articulam com a organização da vida social em novas bases. Como será organizada a produção em cada fábrica, em cada cidade ou como será organizada a Educação em cada bairro, como serão criadas as crianças menores, como será o abastecimento de água, energia elétrica, etc. – são questões, entre muitas outras, que serão decididas pelas pessoas e comunidades diretamente envolvidas. A autonomia dos indivíduos e a autonomia das comunidades locais são condições para a cooperação voluntária e consciente de todos os indivíduos que compõem a humanidade.
O trabalho associado
Todavia, essas profundas e importantes inovações que a revolução traz para a organização política e social não são suficientes para conduzir o processo de transição ao comunismo, porque se limitam às esferas da política e da vida social. Se essas inovações não forem, ao mesmo tempo, acompanhadas pela substituição crescente pelo trabalho associado do trabalho proletário (isto é, o trabalho explorado do modo de produção capitalista), o capital voltará a dominar a sociedade mais cedo ou mais tarde. A consolidação e o avanço político e social que a revolução traz não podem se consolidar e avançar para o comunismo se não houver a substituição do trabalho proletariado pelo trabalho associado em um espaço de tempo não muito longo. Temos, com isso, a quinta característica importante do socialismo: o revolucionamento da produção pela entrada do trabalho associado.
O trabalho associado apenas pode existir em condições sociais muito específicas: a capacidade produtiva deve ser muito maior do que todas as necessidades de todos os indivíduos que compõem a humanidade. Marx e Engels calculavam que, em seus dias, se todos os indivíduos capazes trabalhassem, seria preciso uma jornada de 40 horas por semana para produzir tudo o que a humanidade necessitava. Hoje, precisaríamos trabalhar poucos minutos por dia[2].
Esse é o significado da abundância: no modo de produção capitalista, para que os lucros sejam os mais elevados, aqueles que trabalham precisam cumprir jornadas de 8 ou mais horas por dia, enquanto uma enorme parte dos trabalhadores é condenada ao desemprego. No socialismo, pelo contrário, precisaríamos trabalhar ridiculamente pouco para produzirmos o que necessitamos.
Na esfera da produção, a primeira tarefa do socialismo é trazer todos para trabalhar. Não apenas os desempregados, mas TODOS. Isso significa que passarão a trabalhar todos aqueles que exerciam atividades como a polícia, o exército (que deixaram de existir), o funcionalismo público, os empregados nos sistemas administrativos das empresas, etc. A jornada de trabalho deve ser rapidamente reduzida de forma significativa – devendo se reduzir cada vez mais conforme se avança para o comunismo.
Como todos estarão produzindo para o consumo de todos, como se trabalha muito menos horas e consome-se muito mais do que na velha ordem burguesa, o interesse comum passa a ser a mais eficiente colaboração de todos com todos. Quanto melhor a colaboração, todos trabalham menos e, ainda, podem consumir, assim o desejando, ainda mais. A colaboração (não mais a concorrência) passa a ser a necessidade cotidiana de todos. A organização da produção vai deixando de ser a organização e controle das pessoas para se concentrar na administração das coisas e dos processos de produção: algo muito mais simples e que não requer todos os mecanismos de controle da produção capitalista.
Necessitando-se de um menor controle precisam-se de menos pessoas a ele dedicadas: mais gente pode ser deslocada para a produção, com isso a jornada de trabalho pode ser ainda menor e assim sucessivamente. A economia passa a funcionar por outro critério: ao invés do lucro, o “tempo disponível” para todos viverem a vida que desejarem. Quanto menos tempo necessário de trabalho, maior o “tempo disponível”.
O trabalho no socialismo deixa de ser exercido pelo controle da classe dominante sobre os trabalhadores e passa a ser a colaboração livre, voluntária e consciente de todos os seres humanos com a finalidade de produzirem o que necessitam. Isto é o trabalho associado.
A substituição, a mais rápida praticável, do trabalho proletário pelo trabalho associado é o que caracteriza o socialismo do ponto de vista da produção: como vimos, esta é sua quinta característica, ao lado da substituição do Estado pela Comuna ou Soviet, a substituição do exército e da política pela milícia dos trabalhadores em armas, a criação de um governo com representantes que podem ser removidos a qualquer momento pela base e que recebem o mesmo salário dos trabalhadores e, por fim, a auto-organização e autonomia dos trabalhadores em todas as esferas, mas principalmente na produção.
Tudo isso nos conduz à sexta característica do socialismo: a Internacional
A Internacional
A humanidade hoje se organiza em países. Os países são, se bem analisados, nada mais do que um território dominado por um Estado que é a expressão política do domínio de uma classe exploradora sobre os trabalhadores. O que hoje se chama de nação ou de país – e o patriotismo que faz parte de sua ideologia – nada mais são do que a expressão, em nossos dias, do domínio da burguesia sobre o proletariado em um território determinado.
No mundo que conhecemos, a concorrência existente entre as classes dominantes se expressa na concorrência, que leva à guerra, entre os países. A cooperação de todos os trabalhadores, de todos os países vai eliminar a concorrência e a oposição entre as nações que hoje conhecemos. Apenas será possível reduzir a jornada de trabalho de forma significativa se a cooperação entre os trabalhadores dos, hoje, distintos países for se tornando cada vez mais forte e intensa. Uma cooperação internacional dará origem a uma organização mundial dos trabalhadores.
Daqui a sexta característica importante do socialismo: não haverá mais países e fronteiras como hoje conhecemos. Todos os humanos serão cada vez mais (lembremos: o socialismo é um processo de transição ao comunismo) trabalhadores associados e, cada vez mais, a cooperação internacional imporá uma organização internacional da produção. Esse governo internacional dos trabalhadores é o que o movimento revolucionário clássico (isto é, da época de Marx, Engels, Lenin, Rosa Luxemburgo, etc.) denominava de a Internacional. A criação e fortalecimento da Internacional, o governo mundial dos trabalhadores é a sexta característica importante do socialismo.
Socialismo e Comunismo
Frente ao capitalismo, o socialismo é quase um paraíso que parece impossível de ser atingido.
Trabalhar um ou mais dias por semana, ter acesso a todos os bens produzidos pela humanidade, participar das decisões e do poder todos os que trabalham é, para nossos dias, um paraíso quase inimaginável (lembremos, o velho Estado será substituído pela milícia dos trabalhadores em armas e pela auto-organização dos trabalhadores).
Todavia, ainda não é o comunismo. O socialismo, por ser uma fase de transição, ainda contém restos do velho passado. A classe dominante, enquanto existir tentará sabotar a produção, inviabilizar o socialismo e para impedi-la a milícia dos trabalhadores em armas é imprescindível. Apenas pela força pode-se impedir a contrarrevolução: pois é sempre pela força que a contrarrevolução tenta impor novamente a exploração dos trabalhadores.
Nesse período de transição, ainda haverá a luta de classes e, por isso, a milícia dos trabalhadores em armas é tão decisiva, repetimos. Ainda que seja a repressão da enorme maioria da população contra a minoria, ainda assim é uma situação histórica em que a força ainda decide para onde vai a humanidade. No socialismo a sociedade é muito mais “democrática” que qualquer democracia burguesa, pois é a maioria que reprime a minoria, não o inverso. Mas ainda é a força e a violência, como dizia Marx e Engels, a “parteira da história”.
Por isso, Marx, Engels, Lenin, Rosa Luxemburgo entre muitos denominaram de Ditadura do Proletariado o novo governo revolucionário. Ditadura porque – sem a hipocrisia da ideologia burguesa – assume-se abertamente a repressão sobre os contrarrevolucionários. E proletária porque irá desaparecer tão logo as classes sociais tenham desaparecido, com a transformação de todos em trabalhadores.
O máximo da justiça que teremos no período socialista será o de “igual remuneração para trabalho igual”. Quem trabalha tem acesso aos bens produzidos na proporção em que contribuir para a produção. Frente ao mundo burguês, é um enorme avanço: mas, ainda, é essencialmente injusto. Os indivíduos humanos são diferentes entre si, suas necessidades pessoais e sua capacidade de produção individual não são as mesmas. Tratar os indivíduos como iguais (um enorme progresso frente à “justiça” burguesa) é, no fundo, uma vasta injustiça. No comunismo, teremos um critério verdadeiramente justo: “a cada um, de acordo com sua necessidade; de cada um, de acordo com sua capacidade”.
Conclusão
O socialismo, portanto, é a finalidade primeira de todo movimento revolucionário. Derrubar a ordem burguesa e implantar o socialismo significa abrir a transição para o modo de produção comunista. Mas é apenas a finalidade primeira: o real objetivo dos revolucionários é o comunismo. E há uma razão básica para ser assim: se o trabalho proletário, portanto, explorado, não for superado completamente pelo trabalho associado, os problemas históricos que hoje a humanidade enfrenta não poderão ser solucionados e, ainda, as enormes possibilidades de desenvolvimento que temos hoje não poderão ser aproveitadas. Em poucas palavras: o poder do capital retorna e as misérias do trabalho proletário voltam a ordenar a vida social.
O comunismo é claramente definido: um modo de produção fundado no trabalho associado, sem exploração do homem pelo homem, sem propriedade privada, sem Estado e sem patriarcalismo (sem família monogâmica). O socialismo é a transição histórica do capitalismo ao comunismo. As principais tarefas dessa transição: ir substituindo o trabalho proletário pelo trabalho associado; destruir o velho Estado e o substituir pelo autogoverno dos trabalhadores, criar e fortalecer a Internacional. Essa é a tarefa histórica imediata dos revolucionários em nossos dias.
Indicações para leitura:
O texto mais interessante para se iniciar o estudo é de Lenin, O Estado e a Revolução. De Marx, três textos são esclarecedores: As lutas de classe na França, em que analisa a Comuna de Paris, a Crítica ao Programa de Gotha e, com Engels, O manifesto comunista. De Engels, muito útil é Do socialismo utópico e científico – mas devemos desconsiderar seu entusiasmo pela estatização dos meios de produção, um entusiasmo que a história não confirmou. De Ivo Tonet, Sobre o socialismo (Instituto Lukács) é o melhor texto produzido entre nós.
[1] Como vimos em “As classes sociais”, são dessas formas de trabalho que brotam as diferentes classes sociais, são essas formas de trabalho que determinam a essência de cada modo de produção baseado na exploração do homem pelo homem.
[2] Há cálculos que indicam que precisaríamos trabalhar cerca de 6 minutos por dia para produzirmos tudo o que necessitamos.