Dando sequência ao debate sobre a utilização de tecnologias na agricultura e que essa utilização, além de aumentar a produtividade (atendendo toda a demanda por alimentos), ela não é danosa ao ambiente, publicamos o segundo texto de Paulo Paes Andrade, pesquisador, foi prof. da UFPE, e membro do CTNBIO (2006/2012).
Também reafirmamos que o espaço está aberto para quem defende outras formas de controle da produção agrícola.
Esse texto não necessariamente reflete a posição de Emancipação Socialista.
Variedades modernas de plantas e animais que consumimos hoje – mais do que apenas seleção natural.
Um pouco de luz e de quebra de paradigmas sobre como novas variedades de plantas têm sido obtidas nos últimos 50 anos. Discussão sobre “o papel de Deus” na geração de novas variedades.
No primeiro texto dessa série (https://www.emancipacaosocialista.org/2023/a-modificacao-de-plantas-e-animais-nos-ultimos-10-milenios/) comentamos como as plantas que hoje cultivamos para nosso consumo são em geral muito diferentes das que existiam na natureza. Essa modificação profunda foi o trabalho de milhares de anos de seleção artificial de variedades que surgiam espontaneamente, originadas de mutações aleatórias. Não é, portanto, por acaso, que a maior parte das plantas que consumimos tiveram origem em civilizações antigas: a continuidade do processo de melhoramento precisava ser garantida por uma sucessão de formas de organização social duradouras e que mantivesses várias prioridades em comum, por um longo período.
O milho, planta paradigmática desse processo, surgiu do cruzamento de plantas diferentes e é, portanto, um híbrido interespecífico inteiramente criado pelo trabalho contínuo de centenas de gerações de agricultores e agricultoras. Esse trabalho estupendo foi apropriado pelos imperadores olmecas, astecas e maias através do não-reconhecimento da contribuição fundamental dos camponeses, substituindo-os pela criação divina do milho (e do homem, a partir do milho), cristalizada no texto religioso maia mais conhecido, o Popol Vuh.
A partir de Mendel e da compreensão científica da geração da diversidade e dos processos de seleção artificial de variedades, o melhoramento das plantas, e também dos animais de criação, ganhou um ímpeto enorme. Na década de 50 foi descoberto o vigor híbrido e isso impulsionou ainda mais a produção de novas variedades e de animais. Por outro lado, o uso do híbrido interespecífico tirou das mãos do agricultor o desenvolvimento de variedades modernas de alta produtividade, que agora está sob controle de um reduzido número de empresas e institutos de governo.
Um passo importante no desenvolvimento de novas variedades de plantas foi o uso de irradiação ou de agentes químicos para provocar mutações, acelerando assim o que a natureza nos dá, de forma espontânea, mas muito lentamente. Pode parecer estranho e até um pouco assustador, mas o uso de agentes mutagênicos foi e é comum e hoje cultivamos e consumimos centenas de plantas obtidas dessa forma. No Brasil consumimos, por exemplo, uma variedade de arroz que foi obtida por esse processo. Outras 14 plantas obtidas dessa forma estão registradas para produção e consumo no MAPA. A figura 1 a seguir ilustra o uso de variedades induzidas por mutagênese.
Figura 1: Os três países com maior número de cultivares obtidos por mutagênese registrados são a China (807 produtos), o Japão (478 produtos) e a Índia (338 produtos). O Brasil aparece ao final do ranking, com 15 produtos registrados. Fonte: CropLife Brasil.
O uso de mutagênese ou a exploração do vigor híbrido para o desenvolvimento de novas variedades de plantas e animais dificilmente poderão ser levados à frente na agricultura familiar, mas ela pode se beneficiar dos avanços obtidos nos órgãos de pesquisa oficiais e mesmo nas empresas privadas. De fato, os criadores de suínos, pequenos ou grandes, já se beneficiam de forma importante da heterose (ou vigor híbrido) quando utilizam leitões obtidos por cruzamentos controlados que exploram esse fenômeno biológico. As plantas e animais obtidos dessa forma não são transgênicos e não passam pela análise da CTNBio, estando seu uso regulado exclusivamente pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. O milho híbrido também explora a heterose para aumento da produtividade e milhos híbridos estão à venda através da Embrapa (https://www.embrapa.br/cultivar/milho) e de outras empresas e agências oficiais similares. Muitas outras culturas adotadas na agricultura familiar podem, potencialmente, beneficiar-se da heterose (*) e da mutagênese induzida.
Como comentado acima, as duas tecnologias não são amenas ao controle pela pequena agricultura, mas o movimento social organizado em torno da agricultura pode assumir o papel de produzir os híbridos e fornecer animais para engorda e abate, tendo como apoio os órgãos oficiais de melhoramento agrícola. Esse empoderamento precisa ser pensado de forma séria, em lugar de uma rejeição a priori das tecnologias.
Glossário:
(*) Heterose ou vigor híbrido é o aumento do vigor ou de alguma outra determinada característica em estudo, decorrente do cruzamento entre indivíduos geneticamente divergentes, sendo considerada uma das maiores contribuições da genética para a agricultura, com grandes reflexos para a produtividade agrícola.
Fonte – http://bdta.ufra.edu.br/jspui/handle/123456789/2272